sábado, 6 de fevereiro de 2016

O mentalismo como ferramenta de opressão

Quando iniciei Psicologia um fato me preocupava, mesmo conhecendo muito pouco (mais próximo de nada, sendo sincero) desta área do saber. A única informação que eu tinha é que na Psicologia se falava muito do tal do inconsciente e da mente - e isso me incomodava. Não sabia dizer direito o motivo, mas usar o inconsciente e a mente sempre me parecia inadequado ou insuficiente para explicar porque as pessoas agem como agem.
Contraditório como possa soar, a principal razão que me levou a cursar dois anos e meio de Engenharia e a prestar vestibular para Física é a mesma que me levou à Psicologia. Eu queria entender como o cérebro funcionava para entender porque as pessoas faziam o que faziam. Achava que para isso deveria entender como funcionam circuitos elétricos e depois achei que tinha que entender física quântica. Talvez esses raciocínios não estivessem inteiramente errados, mas, na realidade, o que eu queria entender é porque as pessoas se comportam como se comportam.
A insatisfação com possíveis respostas que poderiam ser dadas pelas ciências exatas já revelava ali, de maneira mais incipiente, a minha resistência ao mentalismo e ao internalismo, como também se expressou nas biológicas e humanas. Explicações que viessem do cérebro, da fisiologia, da biologia, do fato social etc. não poderiam ser suficientes para contemplar a complexidade do comportamento humano e pareciam sempre deixar de lado, em maior ou menor grau, o ambiente.
Foi só no terceiro período de Psicologia, 8 anos depois de ter dado o primeiro passo nessa busca, que eu fui tomar conhecimento de que existia outra leitura - outra visão de mundo e de homem - sobre o comportamento humano: o Behaviorismo Radical.
Já de cara veio o primeiro “tapa”. É Radical por se opor radicalmente ao mentalismo. “Mas isso é possível?” - eu lembro de ter me questionado. É possível falar sobre comportamento sem ter que falar de coisas dentro da pessoa fazendo elas se comportarem? Sem falar em livre arbítrio, desejo, pulsão, inconsciente, mente, arquétipo, vontade e tantos outros termos desta sorte? A resposta, felizmente, foi um retumbante sim.
E foi além disso. Como visão de mundo, o behaviorismo de B.F. Skinner apontava no mentalismo uma série de prejuízos à sociedade, as quais, futuramente, fui enxergar em todas as formas de opressão presentes em nosso cotidiano.
Sedutoras como são as explicações que apelam ao interno, à essência ou a abstrações, com grande frequência me vinha um desconforto provocado pela sensação de que a defesa por essas explicações se dava muito mais no encontro de algo que era dito de modo aprazível, às vezes até romântico ou poético, e que a opção por defesa destas explicações se dava quase que por um “enamoramento” com a teoria, deixando, não raramente, de lado qualquer preocupação com a cientificidade exigida, em especial, ao se considerar que lidamos com o futuro de outras pessoas.
Obviamente, não se trata de generalizar todos os estudiosos dessa ou daquela linha a isso, mas as justificativas por defender esta ou aquela teoria (criticando o behaviorismo, muito frequentemente) são extremamente similares às justificativas usada por indivíduos com crenças religiosas para defender seus credos:
  • Mas não pode ser isso.” - com frequência reduzindo uma explicação contextualista por ela não ser descrita de maneira abstrata ou romantizada;
  • Você está sendo reducionista” - referindo-se às leis comportamentais que, como tentarei mostrar brevemente, favorecem muito mais o respeito à singularidade do que as teorias mentalistas;
  • Eu acredito nisso, você tem que respeitar.” - bem, Psicologia é ciência, não crença - e respeito não implica evitação da discussão e do apontamento de contradições;
  • Você não pode se fechar na ciência, o ser humano é mais que isso.” - demonstrando um conceito bastante equivocado do que é ciência - que já tratei em outro texto meu: http://migre.me/sU4No;
  • Funciona e faz bem para a pessoa.” - essa, pessoalmente, é uma das que mais me incomoda - não só se abre mão de investigar o processo pelo qual a pessoa “melhorou”, como se justifica os fins pelos meios e, além disso, a função última da terapia passa a ser “funcionar”, ou seja, torna-se utilitarista.
    Mas, afinal, qual o grande problema com explicações mentalistas e internalistas? Como isso pode favorecer a opressão? O primeiro grande entrave desse tipo de hipótese sobre o comportamento humano está na circularidade do argumento, como bem apontada por Matos (1995): “ao mesmo tempo em que essa alma ou mente causavam e explicavam o comportamento, esse comportamento era a única evidência desta alma ou desta mente” (ex.: sonhos e o inconsciente; força de vontade e sucesso; boa alma e bom comportamento, etc.).
    Outra questão está na insuficiência dessas explicações, uma vez que tendem a atribuir a eventos sem bases físicas ou materiais, a eventos fisiológicos ou a explicações conceituais sem puramente hipotéticas, a explicação de comportamentos, ignorando parcialmente - ou totalmente - o papel de determinantes ambientais. É perceptível a gravidade dessa lógica, se levarmos em consideração a frequência com a qual recorremos a ela para explicar nossas relações com o meio.
Temos sucesso porque nos esforçamos; o indivíduo é viciado pois lhe falta força de vontade; se acreditarmos teremos um resultado positivo; podemos fazer o que queremos, pois somos livres para escolher; vamos mal nos estudos porque somos preguiçosos; choramos porque estamos tristes; batemos em alguém porque sentimos raiva; comemos porque temos fome; a menina foi estuprada porque queria ser; o estuprador estuprou porque desejava aquela menina; o assassino mata porque é mau; o bandido rouba porque lhe falta deus no coração; o indivíduo é gay porque alguma parte do seu cérebro ou da sua genética é assim ou assado; o cara bem sucedido o é pois é inteligente; ajudamos os outros pois somos solidários; para termos sucesso temos que ser otimistas; somos influenciados por estruturas internas (perversas, neuróticas ou psicóticas) que irão nortear nosso funcionamento pelo resto da vida; desenvolvemos um tipo de personalidade na infância (ou já nascemos com ela, dependendo da linha) que irá nos influenciar pelo resto da vida; recebemos influência de arquétipos e complexos que irão influenciar em como agiremos; o negro é inferior e menos inteligente porque tem um cérebro menos desenvolvido; o cérebro da mulher faz com que ela seja mais falante e mais sensível; o cérebro do homem o torna mais agressivo… A lista renderia um livro.
James Holland, outro estudioso do Behaviorismo aponta, de maneira muito explícita, a opressão encoberta no mentalismo e no internalismo. Já citei este trecho uns dois textos atrás, mas acredito que a mensagem contida nele é fundamental para reforçar o problema dessas explicações e, portanto, vou usá-lo novamente:
“O mito das causas internas é alimentado devido ao reforçamento fornecido à elite e também devido ao papel que ele desempenha na manutenção do presente sistema. As pessoas que ocupam alta hierarquia no poder afirmam que atingiram essa posição elevada devido a um grande mérito pessoal. Os ricos têm liberdade de usar seus recursos internos, sua vontade, determinação, motivação e inteligência de forma a alcançarem seu alto nível. As causas internas servem como justificativa para aqueles que tiram proveito da desigualdade (...). Aos pobres é reservado um conjunto especial de causas internas. Diz-se que eles são preguiçosos, sem ambição, sem talento. Aqueles que extraem o máximo de nosso sistema social podem considerar punitivo encarar sua boa sorte como o resultado de um sistema que explora as pessoas menos privilegiadas e que cria a pobreza e a infelicidade. Se isso é verdade, as afirmações verbais que atribuem a posição de cada indivíduo na sociedade a traços pessoais, tanto inatos como resultantes de uma cultura menos desenvolvidas, seriam reforçadoras” (p.61, 1983).
    O que o autor afirma neste trecho é que defender explicações como a da meritocracia (se você não consegue o que quer, é porque não se esforça) é extremamente vantajoso para a elite, pois não só justifica e mantém a desigualdade do atual sistema, como isenta a sociedade e os indivíduos “bem-sucedidos” de ter que analisar as condições para seu sucesso e planejar ambientes que favoreçam a redução da pobreza, por exemplo.
Reproduzir este discurso, portanto produz consequências positivamente reforçadoras (ou seja, tornam mais prováveis a continuidade da repetição desse discurso pois apresentam algo desejável para a elite), à medida em que enaltecem e individualizam o sucesso de um sujeito e justificam, isolam, excluem e oprimem os que não atingem o sucesso (consequências negativamente reforçadoras para a elite, pois afastam algo aversivo, incômodo).
Este é apenas um exemplo, mas facilmente se pode aplicar o raciocínio aos outros exemplos de explicações mentalistas e internalistas aqui expostos. Skinner (1953/1965) defende que por não sermos capazes de observar um comportamento encoberto: “(...) somos encorajados a conferir-lhes [aos eventos internos] propriedades sem justificação. Pior ainda, podemos inventar causas deste tipo sem medo de contradição”.
A tendência animista (algo que é animado por uma essência - a alma, por exemplo) e supersticiosa das explicações mentalistas e internalistas isola completamente essas suposições do fazer ciência. Busca-se mais a legitimação de uma crença do que a investigação minuciosa e operacionalmente descrita do comportamento humano.
Além disso, defesas como as mentalistas e internalistas sempre pressupõem, em alguma medida, o dualismo. Mente x cérebro, corpo x alma, inconsciente x consciente, etc. Tal cisão já vem sendo amplamente contrariada pelos avanços das neurociências, bem como pelas explicações funcionais e contextuais do comportamento apresentadas pela Análise do Comportamento.
Por fim, um dos mais graves problemas do mentalismo e do internalismo é a adoção de termos altamente abstratos e sujeitos às mais diversas interpretações sendo, não raramente, utilizados para legitimar e justificar a opressão. O grave problema de um termo não operacionalizado, como o “bom senso” por exemplo, é a imensa gama de variáveis que podem afetar a compreensão que cada indivíduo terá deste termo. Uma descrição funcional e contextual de um comportamento evita em grande medida o perigo do viés “subjetivo” (muitas vezes utilizado para justificar um preconceito) na descrição de um comportamento.
Quando o Behaviorismo defende que todos os seres humanos estão sujeitos a leis comportamentais, contrário ao que os críticos afirmam, não se está reduzindo a singularidade humana - está se abrindo margem para que esta seja explorada da maneira mais profunda possível, uma vez que entender o comportamento de um indivíduo implica em entender que ele é produto de uma história genética, cultural e de reforçamento. Analisar apenas uma dessas esferas é fazer uma leitura incompleta e, portanto, reducionista, da complexidade humana.
Explicita-se, dessa forma, a lógica opressiva que o mentalismo e o internalismo - direta ou indiretamente - impõem sobre os indivíduos e porque, tão frequentemente, são estas as explicações utilizadas pelos opressores. É mais fácil afirmar que o indivíduo que vai mal nos estudos e larga a faculdade o faz porque é preguiçoso ou vagabundo do que analisar as condições ambientais que podem ter favorecido esse mal desempenho (ambiente familiar, método de ensino, estilo de aprendizagem, dentra tantas outras possíveis variáveis que poderiam ser levantadas em uma leitura funcional e contextual deste comportamento) e propor modificações que tornem o bom desempenho mais provável.
Nesse tipo de lógica, individualiza-se o problema, retirando-se a singularidade do sujeito. Isenta-se a sociedade de responsabilidade sobre sofrimentos que são, ao mesmo tempo, genéticos, culturais e individuais (jamais enfatizando um sobre o outro) e validando opressões históricas a partir de invenções explicativas que, por não terem base material, não podem ser contrapostas, caindo na lógica falaciosa do: “se você não pode provar que não existe, você não pode dizer que não existe”, sendo que a real questão aqui são as consequências reais causadas por estas visões de mundo.
Não se trata apenas de afirmar que não existe inconsciente, pulsões, força de vontade, livre arbítrio, alma etc. Trata-se de observar as consequências que a emissão desses comportamentos verbais têm na comunidade verbal em que ocorrem. O resultado, na avassaladora maioria das vezes, será a perpetuação de algum tipo de opressão que pode durar séculos.
A visão de mundo proposta pelo Behaviorismo Radical - a de que nos comportamos devido às consequências e não devido a agentes internos - é revolucionária, pois é radicalmente contrária aos discursos de liberdade (o livre-arbítrio, em especial), e às explicações causais mentalistas, essencialistas e internalistas do comportamento. A partir desta explicação o homem torna-se determinado por seu ambiente e pelas consequências nele produzidas. 
Dessa forma, como bem coloca Skinner: “Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são modificados pelas consequências de sua ação” (1957/1978, p.15). Micheletto & Sério (1993, p. 3) complementam:
“O homem constrói o mundo a sua volta, agindo sobre ele e, ao fazê-lo está também se construindo. Não se absolutiza nem o homem, nem o mundo; nenhum dos elementos da relação tem autonomia (...). A cada relação obtém-se, como produto, um ambiente e um homem diferentes”.
    O comportamento, portanto, é produto das interações organismo-ambiente, selecionado por suas consequências e não produto de alguma intencionalidade determinista, de forças de vontade, da alma, do inconsciente (ou termos afins). Skinner, seus antecessores e sucessores, dessa forma, propõem uma leitura de mundo que coloca o homem como medida das coisas - produtor e produto de seu ambiente -, porém, não de maneira isolada ou individualizada e sim como resultante da evolução das espécies, do seu aprendizado individual e, também, do aprendizado cultural. Todos com igual importância.
    Falei em meu último texto (http://migre.me/sU81g) sobre a importância de a revolução ser pautada por reforçadores positivos, ou, em termos mais conhecidos, pelo amor e não, pela coerção. Acredito que no que concerne o conteúdo verbal da coerção, o discurso mentalista e internalista se faz presente, de alguma forma, na maior parte das vezes.
Nem toda coerção é mentalista e internalista, mas com muita frequência esse tipo de explicação é coercitivo. Uma revolução pautada no rompimento com a coerção deve confrontar os principais mecanismos utilizados para oprimir os seres humanos. Outro elemento fundamental para a revolução, portanto, é o combate aos discursos mentalistas e internalistas e buscar explicações contextuais e funcionais para o comportamento humano, para que seja possível, finalmente, superar a desigualdade existente em nossa sociedade.

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Holland, J. G. (1983). Comportamentalismo: parte do problema ou parte da solução? Psicologia, 9(1), 59-75.
Matos, M. A. (1995). Behaviorismo metodológico e behaviorismo radical. Bernard Rangé (org.), Psicoterapia comportamental e cognitiva: pesquisa, prática, aplicações e problemas. Campinas: Editorial Psy.
Micheletto, N. & Sério, T. M. A. P. (1993). Homem: Objeto ou Sujeito para Skinner? Em: Temas em Psicologia – Análises da Análise do Comportamento: Do conceito à aplicação. Sociedade Brasileira de Psicologia, nº 2.
Skinner, B. F. (1978). Verbal behavior. New York: Appleton-Century-Crofts. (Trabalho original publicado em 1957).
Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York: Macmillan. (Trabalho original publicado em 1953).

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Revolução ou Coerção?

Diariamente somos expostos a diversos contextos em que a palavra revolução emerge. Na escola aprendemos sobre a revolução industrial, inglesa, francesa e diversas outras revoluções que marcaram importantes momentos históricos. No trabalho muitas vezes ouvimos que precisamos de algo revolucionário para resolver um problema. A internet revolucionou a maneira como nos comunicamos. A revolução científica nos permitiu termos a qualidade de vida que hoje temos. Enfim, exemplos do uso do termo e seus derivados não faltam.
Falar em revolução na política, no entanto, suscita todos os tipos de reações, desde defesas apaixonadas até repúdios hostis. Curiosamente a rejeição violenta a essa ideia costuma ocorrer por parte dos que acreditam que revolução é sinônimo de violência.
Contudo, entender revolução – no caso específico da derrubada do capitalismo – como sinônimo de violência parece ser um ponto recorrente tanto dos que defendem como dos que se opõem à mudança do sistema vigente. Nos próximos parágrafos irei me ater aos defensores, por estar, eu também, no meio deste grupo.
Obviamente, a discussão sobre o que é revolução de fato é muito mais extensa do que o que se pretende expor nesse texto. Para fins de contextualização, uma definição bastante simplificada poderia ser a de revolução como a sobreposição de um sistema considerado antiquado ou inadequado. As condições para essa sobreposição e como ela se daria, de fato, variam de grupo para grupo.
Há os que defendem uma revolução a partir de reformas estruturais que alterem a essência do sistema, mas sem derrubá-lo. Há, também, os que acreditam que o sistema atual deveria ser totalmente abolido, sem aproveitar nada e que se implantasse algo novo em seguida. Há os que acreditam que a única maneira de se superar o sistema atual é pegando em armas e confrontando os opressores. Há, por fim, o grupo no qual eu me encaixo, que acreditam que o que deve pautar a revolução jamais deve ser a coerção, uma vez que isso negaria a própria ideia de revolução.
Mas o que é coerção, afinal? Murray Sidman, em seu excelente livro “Coerção e suas Implicações”, coloca coerção como sendo o uso de punição ou ameaça de punição, bem como recompensar pessoas por evitarem nossas punições e ameaças. Os exemplos são incontáveis, uma vez que esta é a prática preferida para controle comportamental em qualquer esfera.
Os pais que ameaçam colocar (ou colocam) o filho de castigo caso não se comporte como deseja. Evitar multa por dirigir dentro da velocidade próximo a radares. O namorado ou namorada que afirma que o/a parceiro/a não gosta dele/a por não fazer algo. O professor que condiciona a atenção a dado conteúdo ao fato de que ele irá cair na prova. E a lista segue indefinidamente.
Mesmo quando recompensamos alguém por um dado comportamento não é raro que ele venha acompanhado de uma ameaça de punição. “Se você fizer algo recebe recompensa, caso contrário, será punido”. Se você estudar tira nota boa, caso contrário reprovará. Essas regras parecem tão óbvias e verdadeiras que não raramente acreditamos que as coisas têm que ser assim mesmo.
O exemplo mais evidente da lógica coercitiva encontra-se no sistema penal. Em um país com a terceira maior população carcerária do mundo é inquestionável que, no Brasil, punição é a solução para tudo. Por mais que se aplique com pesos e medidas diferentes para pobres e ricos, o que se clama sempre é a prisão.
E engana-se quem acha que isso é exclusivo de grupos conservadores. Nestes é comum que se peça a penalização para situações como as vistas na redução da maioridade penal, aborto, “cristofobia”, “heterofobia” e outras aberrações. Para mim, pessoalmente, tão absurdo quanto os pedidos feitos por essas pessoas é pedir a mesma prática para crimes que são inquestionáveis - e, sem dúvidas, necessários de sofrerem consequências que visem a impedir sua repetição e reparem o dano - como a violência contra a mulher, lgbtfobia, genocídio da juventude negra, dos povos indígenas e tantas outras barbáries que tomamos conhecimento diariamente.
Soa-me absurdo porque, ao mesmo tempo em que se defende que não faz sentido prender uma criança por um crime que tenha cometido, uma vez que o sistema penitenciário não corrige e é repleto de violações de direitos humanos, defende-se que os que cometem essas violências sejam presos. Entende-se, corretamente, que, ao mesmo tempo que prender o usuário de drogas ou a mulher que aborta não faz sentido (primeiramente por já ser incoerente considerar tais atos como sendo criminosos), pois isso comprovadamente não reduz nem o uso nem os abortos, defende-se a prisão para outros tantos, afim de reduzir crimes, como os de ódio, por exemplo.
Esta lógica, para mim, é emblemática, porque representa muito evidentemente o padrão relacional humano que se sustenta na coerção. Somos expostos o tempo todo a punições e a ameaças de punição. Quando não conseguimos escapar delas, com frequência o que fazemos é reproduzir o padrão. Como nem sempre a reação pode ocorrer com quem nos pune (e nem deveria, mas chegarei nesse ponto depois), punimos os outros.
Sem dúvidas, reagir à punição de maneira não exclusivamente punitiva é um desafio sem precedentes. A armadilha, no entanto, está em acreditar que isso é o melhor que dá pra fazer ou só o que dá pra fazer, no momento. Pedir a prisão de lgbtfóbicos ou agressores de mulheres e esperar redução nesse tipo de crimes é ingenuidade. Por mais que pareça inevitável a necessidade de afastamento de tais pessoas da sociedade está na hora de nos questionarmos se a solução é essa mesmo.
Retirar indivíduos que cometem crimes motivados pelo ódio da sociedade contribuirá para a redução desse ódio ou para que tais crimes continuem ocorrendo? A resposta a essa pergunta não é uma questão de acreditar que sim ou não. As evidências em diversas sociedades e no laboratório mostram claramente que essa estratégia é totalmente ineficaz.
O que, sabidamente, reduz o ódio e crimes hediondos é o planejamento de culturas mais igualitárias e a promoção de condições ambientais mais favoráveis ao desenvolvimento de valores morais justos e pró-direitos humanos. No caso de aplicação de pena por um crime, esta não deveria se dar pela exclusão social, pauta que combatemos tão insistentemente.
A consequência a esses crimes deveria se dar propiciando ao indivíduo, assistido durante o processo, a possibilidade de construção de novos repertórios. Sem deixar de lado a escuta e o acolhimento. O que fazemos ao prender e jogar a chave fora é enrijecer as regras que o indivíduo já possui – tornando ainda mais difícil qualquer chance de mudança.
O mesmo enrijecimento acontece quando optamos por constranger alguém por dizer algo ofensivo, ao invés de desconstruir assertivamente o preconceito ou a ofensa. Ou quando acreditamos que uma revolução pautada pela destruição do sistema atual ou pelo embate armado possa, de fato, ser uma revolução. Nada disso é revolução – é perpetuação da coerção.
De nada adianta mudar o sistema, se a lógica que embasou a substituição é a mesma: o controle aversivo. Só há uma revolução possível, uma que quebre o ciclo da coerção em nossas relações, e ela tem que ser pautada no amor. Quando falo em amor não me refiro àquela noção romantizada ou reducionista de amor. Numa perspectiva behaviorista, como bem colocou Skinner “o que é o amor senão outro nome para o uso do reforçamento positivo?” (reforçamento positivo pode ser entendido como consequências de nossos comportamentos que aumentam a probabilidade dele voltar a ocorrer, porque a consequência é agradável para o indivíduo).
A colocação parece simplista em um primeiro momento, mas carrega em si o que eu acredito ser a verdadeira base para uma revolução de fato. Reforçar positivamente um dado comportamento é apresentar consequências que não evoquem reações aversivas (desagradáveis) e que afetarão o comportamento fazendo com que ele se torne mais provável de acontecer.
A intenção em afirmar que o amor é outro nome para o reforçamento positivo é nos fazer questionar em que situação falamos que sentimos amor ou que amamos alguém? A resposta, sem exceção, será quando aquele indivíduo se sentir positivamente reforçado pela sua relação com o outro ou com o meio.
Estar sob controle de contingências positivamente reforçadoras propicia ao próprio organismo a produção e liberação de substâncias que favorecem a qualidade de vida, bem como favorece, indiscutivelmente, a consolidação de respostas pró-sociais e permite maior variabilidade comportamental.
Uma revolução real, portanto, será aquela que se propuser a planejar contextos e a produzir consequências que sejam positivamente reforçadoras - visando a aumentar a frequência de comportamentos benéficos para a sociedade, ao invés de focar na punição dos indesejados - promovendo, nada mais, nada menos, que uma sociedade pautada pelo amor.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A competição pelo sofrimento no capitalismo


    Em meados do segundo semestre de 2015 escrevi um texto que abordava alguns dos motivos pelos quais eu considero o capitalismo um sistema indefensável e porque acredito que devemos lutar contra ele (http://migre.me/sIqRp). Dentre os principais pontos estavam a exploração pela mais-valia e pelo trabalho escravo, alguns fetiches capitalistas como a meritocracia, a "lei" da oferta e demanda, o livre mercado e alguns mecanismos de geração de lucro em cima da opressão como o crédito e endividamento, além da lógica de exclusão pelo consumo.
    Um ponto deixado de lado naquela ocasião e que acredito ser pertinente explorar neste momento é a construção, reprodução e frequente busca pela legitimação de regras sobre o que seria uma suposta "natureza humana" (o capital adora um discurso mentalista/internalista). Sobre esta "tara" por explicações mentalistas e/ou internalistas dos comportamentos, Holland, um behaviorista brilhante, é muito feliz ao afirmar que:
“O mito das causas internas é alimentado devido ao reforçamento fornecido à elite e também devido ao papel que ele desempenha na manutenção do presente sistema. As pessoas que ocupam alta hierarquia no poder afirmam que atingiram essa posição elevada devido a um grande mérito pessoal. Os ricos têm liberdade de usar seus recursos internos, sua vontade, determinação, motivação e inteligência de forma a alcançarem seu alto nível. As causas internas servem como justificativa para aqueles que tiram proveito da desigualdade (...). Aos pobres é reservado um conjunto especial de causas internas. Diz-se que eles são preguiçosos, sem ambição, sem talento. Aqueles que extraem o máximo de nosso sistema social podem considerar punitivo encarar sua boa sorte como o resultado de um sistema que explora as pessoas menos privilegiadas e que cria a pobreza e a infelicidade. Se isso é verdade, as afirmações verbais que atribuem a posição de cada indivíduo na sociedade a traços pessoais, tanto inatos como resultantes de uma cultura menos desenvolvidas, seriam reforçadoras” (p.61).
    A grande maioria dessas regras, senão todas elas, são falaciosas. Pessoalmente, acredito que a mais perversa seja a de que o ser humano é competitivo por natureza e que isso é necessário para sobrevivermos. É perversa, pois é em cima desta lógica que irão se fundamentar o individualismo, a alienação à "liberdade" e a cultura do "no pain no gain" (sem dor, sem ganho).
    Se devo competir com meu par para sobreviver ou para garantir a sobrevivência de meu seio familiar (reduzido progressivamente ao longo da história, iniciando na Idade Média e se acentuando no capitalismo) não me interessa garantir a sobrevivência da comunidade ou da espécie. Basta, portanto, que eu garanta os recursos e condições para que eu e meus próximos sobrevivam, uma vez que, apenas assim, posso garantir que serei livre para fazer o que eu quiser - sem ninguém interferindo em minha vida. Além do mais, se conquisto a minha suposta liberdade é pelo meu próprio esforço e suor.
    Esta falsa regra ignora o fato de que o ser humano só sobreviveu às condições extremamente aversivas de Eras anteriores devido a sua capacidade de se mobilizar em grupo (potencializada pelo advento da fala) e de viver em comunidade de maneira solidária e coletiva, visando o bem comum. Ao se privatizar as posses (a propriedade privada), os meios de produção e as relações criaram-se as condições necessárias para que o capitalismo se estabelecesse como única alternativa (não por acaso uma das máximas deste modelo é a "There is no alternative" - Não há alternativa) e não é mera coincidência que estamos caminhando a largos passos para a extinção da raça humana.
 Nos venderam competitividade, individualismo, liberdade e uma vida melhor e não só compramos a ideia, como passamos a acreditar que esta era a única solução viável e que as coisas sempre foram assim.
    Em outro post discorri sobre a importância da ciência baseada em evidências para a revolução (http://migre.me/sIrjx). Um dos argumentos que defendi é de que não se pode chamar de opinião algo que contradiz um dado concreto sobre o mundo em que vivemos. Tais opiniões apenas expõem o grau de desconexão com a realidade do indivíduo e a resistência a mudanças de pontos de vista mesmo quando estes são exaustivamente provados equivocados.
    Afirmar que o feminismo é coisa de "mulheres querendo se fazer de vítima e conseguir atenção e privilégios", por exemplo, é um desses casos, mesmo quando se sabe que entre 2001 e 2011 uma mulher morria a cada uma hora e meia (http://migre.me/sIrPM), que, em 2013, uma mulher brasileira era estuprada a cada dez minutos (http://migre.me/sIrTE), que cinco mulheres são vítimas de violência doméstica a cada dois minutos (http://migre.me/sIrSh), que as mulheres no Brasil recebam, em média, 30% menos que os homens trabalhando em mesmo cargo e com as mesmas qualificações (ou até mais - http://migre.me/sIs0H).
    Outra situação comum é a defesa de que racismo não existe ou que é coisa de negros em relação a negros ignorando evidências como a de que entre 2003 e 2013 o número de homicídios contra jovens aumentou 32.7% (enquanto o de jovens brancos caiu 16.7%. Ou seja, proporcionalmente morrem 173.6% mais negros do que brancos no Brasil (http://migre.me/sIsgW). Ignorando também que 73% dos cadastrados no Bolsa Família em 2013 eram pretos e pardos - em outras palavras, estão em situação de extrema pobreza (R$77 per capita mensal) ou pobreza (R$77,01 a R$154,00 per capita mensais) - http://migre.me/sIsGc. Fazem de conta que não são 60% da população carcerária brasileira os negros e pardos (http://migre.me/sIsJ3) ou que negros recebem, em média, 28% menos que brancos em seus trabalhos mesmo tendo o mesmo nível de instrução e demais qualificações (http://migre.me/sIs0H).
    Um último absurdo para ilustrar a interminável lista de "opiniões" diz respeito à população LGBT. Não raramente se escuta dos mais reacionários que gays, lésbicas, bis e pessoas trans morrem como quaisquer outras e que homofobia não existe. Acrescentam que não se deve dar mais "direitos" a essa população (como criminalizar a homofobia ou transfobia, por exemplo, ou criar programas que reduzam a vulnerabilidade - embebidos da falácia de "direitos iguais" defendida pelos neoliberais).
      Desconhecem (intencionalmente, ou não) o fato de que, em 2014, somente entre Janeiro e Abril foram registradas 337 denúncias de homofobia na Secretaria Nacional de Direitos Humanos (1013 no ano inteiro - http://migre.me/sIsXq) e no mesmo ano, até Setembro, 216 pessoas LGBTs tinham sido assassinadas no país (http://migre.me/sIsTM). Passa batido para essas pessoas também, um estudo realizado em 2009 com 18.599 estudantes de 501 escolas da rede pública de todo o país em que 80 % declararam que gostariam de manter algum nível de distanciamento social de pessoas com deficiência, homossexuais, negros e pobres e 18,2% das vítimas de bullying nessas instituições o são por serem homossexuais (http://migre.me/sIt4O). Assim como não parece ser digno de atenção o fato de que, em 2012, 13.29 pessoas por dia foram vítimas de violência homofóbica no País (http://migre.me/sItcM).
    Onde pretendo chegar apresentando estes dados? Uma vez exposta a inquestionável crueldade da realidade e das opressões sofridas por estes grupos e uma vez constatada a negação, por parte de muitos, destes dados, assim como a invalidação da opressão e perpetuação de toda sorte de violência contra mulheres, população negra, lgbt, indígena, pobres, etc. é impossível não se questionar acerca do que mantém este tipo de comportamento.
    Obviamente, seria impossível esgotar a análise de elementos que podem manter tais comportamentos, mesmo porque existirão condições bastantes particulares à história de aprendizagem de cada indivíduo que caminharão lado a lado com variáveis culturais e filogenéticas (características adaptativas selecionadas pela evolução das espécies).
     No caso do preconceito, uma possível origem filogenética estaria na necessidade de distinguir companheiros de tribo e membros de tribos rivais a partir de generalizações de características físicas ou visíveis dessas tribos; a falha em fazer esta distinção poderia resultar na morte do indivíduo ou da tribo inteira. Esta capacidade teria sido selecionada pelo seu valor de sobrevivência até que, em determinado momento, como foi a partir do momento que a humanidade se constituiu como civilização, que o valor de sobrevivência específico de tal variável perde sua função e ela naturalmente seria transmitida menos frequentemente para os descendentes.
    Há, entretanto, uma condição peculiar ao ser humano que afeta diretamente este cenário: a comunicação por meio da fala e da escrita e a transmissão de regras de uma geração para outra. Ora, sem o conhecimento dos motivos pelos quais determinadas figuras poderiam parecer mais ameaçadoras, ou mais frágeis, ou "inferiores" e sem repertório para questionar tais convicções o terreno fica extremamente fértil para a criação de regras em que a consequência descrita de um comportamento não tem relação direta com os antecedentes ou com o comportamento em si.
    Trocando em miúdos, antes de regras preconceituosas serem transmitidas, poderíamos levantar a hipótese de que há atualmente, por exemplo, um componente filogenético no sentimento de desconforto ou até mesmo de ameaça na presença de um indivíduo de "outra tribo". Uma vez que, em uma sociedade civilizada, não necessariamente este outro represente uma ameaça de uma tribo rival, um conflito emerge. Ou o sentimento de ameaça é questionado (considerando que a pessoa tenha aprendido a fazer este tipo de questionamento) ou cria-se um desconforto maior ainda: o de encontrar alguma explicação para este desconforto.
    Desta forma, uma variável não mais relevante para a sobrevivência da espécie continua a sobreviver pois é mantida por outro componente - a variável cultural. Dependendo da capacidade de raciocínio do indivíduo ele mesmo criará uma explicação (quase, senão sempre falaciosa) e de acordo com seu grau de influência no grupo em que está inserido esta explicação tende a se disseminar e a ser passada de geração para geração (outra possibilidade é o indivíduo ir buscar a explicação de um líder na comunidade e passar a retransmiti-la), estabelecendo-se como prática cultural.
    Como a regra descrita não encontra sustentação em evidências e sim, com frequência, no compartilhamento de um desconforto por um grupo, a probabilidade de que ela seja mantida por afastar o desconforto é bastante elevada. A força que esta regra terá na vida deste grupo depende também da história individual de aprendizagem de cada um destes elementos. Como já dito, se os membros de um grupo foram ensinados a questionar determinados tipos regras, estas práticas culturais terão mais dificuldades em se manter naquele grupo.
    Ao longo do tempo, tais práticas podem ser desacreditadas e cair em esquecimento ou podem ser reatualizadas, ganhando novas máscaras e sendo inclusive legitimadas por agências de controle (governo, igrejas, escolas, comunidade científica, etc.). Para que tais regras se mantenham, contudo, é necessário que o elemento mais nuclear da contingência seja alimentado (ou reforçado). Em nosso exemplo, seria o desconforto sentido na presença de algo considerado ameaçador, dando a este desconforto, credibilidade e ao que é considerado ameaçador, o status de ameaça.
    Uma das maneiras mais corriqueiras de se estabelecer algo como ameaça, além do reforçamento do sentimento de desconforto, é – após a consolidação da propriedade privada e da privatização dos meios de produção e das relações humanas – apontar determinados grupos como potenciais ladrões dessa liberdade individualista. Aqui já há um salto das regras mais elementares criadas e compartilhadas por um grupo, para a apropriação dessas regras por agências de controle para embasar ideologias dominadoras.
    Este passo é fundamental para que a ameaça – que poderia perder o status de ameaça uma vez que as condições na qual aquela condição evolutiva se estabeleceu não mais existem – se firme novamente como ameaça, agora em concordância com regras produzidas por agências de controle que serão transmitidas de maneira persuasiva (ou seja, de modo que o indivíduo acredite que é realmente aquilo que ele quer, inclusive por não haver outra alternativa).
    Estas condições para manter a ameaça enquanto ameaça vão sofrendo modificações ao longo do tempo, mas mantêm um cerne comum: a aposta na aversividade. Comportamentos mantidos por controle aversivo tem muito mais chances de serem estereotipados (apresentam baixa variabilidade) e de serem de difícil extinção (resistem a mudanças no ambiente como a retirada de consequências que mantinham o comportamento).
    Não é difícil encontrar estes elementos nos discursos contra os grupos mais vulneráveis aqui citados. Esta estratégia persuasiva de colocar algo como ameaça porque poria em risco valores fundamentais (quem os definiu como fundamentais?) é o pilar de boa parte do, senão todo o, controle exercido pela ideologia neoliberal. Suas propriedades, seus direitos individuais, sua liberdade, todo o sofrimento que você teve para conquistar o que tem – tudo isso colocado em risco por pessoas que querem ter mais privilégios, mais direitos, mais liberdade que você – sem ter que ter sofrido tanto quanto você (é, eu sei o quanto isto soa absurdo).
    Isto é ainda mais alimentado quando se potencializa o sentimento de ameaça pela lógica da competitividade. A ameaça não quer apenas tirar algo que é seu, eles querem ser melhores que você. Querem se dar melhor com menos esforço. A competição se exacerba de tal forma que, mesmo confrontado com a realidade, ao invés de demonstrar empatia e solidariedade pelo sofrimento dos pares o próprio sofrimento se torna um elemento da competição.
    O filósofo Leandro Karnal ilustra bem essa situação em uma de suas falas quando solicita à sua plateia que faça o exercício de chegar em casa e falar para quem lá estiver “Estou cansado.”. É praticamente certo que a resposta ouvida será “Eu também.”. Este exemplo simplório simboliza de maneira muito potente o quão profundo é o enraizamento da ideologia capitalista em nossas vidas. Admitir que o outro pode estar sofrendo tanto quanto estamos sofrendo e ser solidário e acolher este sofrimento parece colocar em cheque todo o nosso funcionamento no mundo.
    Ao reconhecer que as mulheres, negros, indígenas, LGBTs e pobres também sofrem como sofremos (a intenção aqui não é igualar sofrimento e sim realçar que não é só o indivíduo que sofre, todos sofrem, cada um em suas condições e com consequências diversas) e que as condições de sofrimento para estes grupos implicaram em uma perda brutal de direitos e de qualidade de vida irremediavelmente nos levaria a questionar o status de ameaça destes grupos. Ao perceber que não existe ameaça clara à minha "propriedade privada", à minha “liberdade” e aos direitos que já tenho pode-se abrir uma brecha para que se comecem a questionar estes conceitos. Sou mesmo livre? Estes direitos que tenho, os outros têm também? Faz mesmo sentido acreditar que reduzir e isolar a convivência comunitária ao núcleo familiar dentro da minha propriedade é a melhor maneira de sobreviver?
    Uma vez iniciados estes questionamentos, a persuasão venenosa do capitalismo é imediatamente ameaçada. São em momentos assim, por exemplo, em que a produção de uma crise econômica é fundamental para a manutenção do status quo. Exacerba-se a níveis muito elevados a sensação de ameaça de tal forma que estas e outras regras tenham mais chances de continuar se perpetuando.
    Questionar o capitalismo não é simplesmente defender um outro sistema econômico. Não se trata apenas disto. O capitalismo, para além de um sistema econômico, é um produtor de práticas culturais rígidas e aversivas, ou seja, de regras absolutas sobre o funcionamento do mundo que apostam na coerção para manutenção de um controle persuasivo que visa a alienação dos indivíduos ao individualismo, competitividade e egoísmo. É na promessa constante de afastamento de ameaças que o capitalismo se sustenta e permanece oprimindo, matando e destruindo rapidamente toda e qualquer chance de sobrevivência de nossa espécie. É a aposta na impossibilidade da clássica frase de Bertolt Brecht de que “Nada deve parecer impossível de mudar”. Cabe apenas a nós tornarmos essa frase possível.
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Abaixo, o excelente vídeo do Leandro Karnal sobre o individualismo em nosso mundo líquido. Recomendo!


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