Então,
é Natal.
Compartilhar, perdoar, confraternizar, tudo parece tão justo e
correto e muitos sentem-se tão bem por acreditarem estar cumprindo com todas
essas tarefas nesta data, mesmo que seja somente nela e mesmo que seja somente
na própria interpretação.
Acreditar
(ou ter fé) parece ser o verbo chave desta época do ano, superando a
necessidade de comprovação ou de alguma ação, de fato. Como disse Nietzsche:
"Toda verdade na fé é infalível, ela cumpre
aquilo que o crente espera encontrar nela. Porém, não oferece a mínima base
para se estabelecer uma verdade objetiva". Afinal, o próprio
Natal fundamenta-se em uma das maiores mentiras já contadas até hoje: a suposta
data do nascimento do suposto salvador da humanidade. Devemos compartilhar,
perdoar, confraternizar por que é isto que nos é dito que deve ser feito, por
que é isto que a Bíblia diz que deve ser feito o que, independentemente de ser
cristão ou não, influenciou por muitos séculos e ainda influencia os costumes e
tradições de muitas culturas. A própria ideia de religião perdeu-se e, o que
deveria remeter a uma reinterpretação ou releitura (religião, do latim relegere:
reler) passou a ser tomado de maneira dogmática como uma leitura única e
engessada. Mesmo a leitura romântica do termo (religião como originada do verbo
latino religare - ligar-se de novo) é falha, no sentido que,
ao invés de buscar religar-se com o próprio eu, o ser humano buscou uma ligação
com algo totalmente externo a si mesmo, alienando-se fundamentalmente na
própria crença.
O
não perdoar, não compartilhar, não qualquer coisa que se acredite que deva ser
feita nesta época (e, para muitos, somente nesta época) implica em não ser um
bom cristão, ou um bom ser humano, afinal, perdoar é humano. No entanto, o que
se observa frequentemente é a insistência na imposição destes valores
carregados de expectativas (se eu perdôo, o outro TEM que aceitar este perdão;
se eu proponho uma confraternização, todos TEM que participar desta, e assim
por diante) em uma tentativa de mascarar as próprias falhas, inseguranças e
medos.
E
quanto medo sentimos... parece não haver limites para este sentimento que nos
controla em todas as instâncias de nossas vidas e ao qual temos tremenda dificuldade
em dar uma cara. Quando se pensa no medo, que por tanto tempo perdurou, e ainda
perdura em menor escala, de ir para o inferno ou de ser punido por uma
divindade caso não se cumprissem todas as demandas da religião que se optava
seguir e quando observamos o medo de não ter o que acreditamos que o outro tem,
alimentado pela mídia, em uma sociedade de consumidores, tal qual como a em que
vivemos, não é tão complicado perceber do que temos tanto medo.
Fala-se
tanto em perdoar no Natal, mas me parece que o ideal de perdão que existe é, no
mínimo, falacioso. É uma mistura de aceitação arrogante com anulação do eu
mesmo. Aceito o que o outro fez como se pudesse julgar toda a extensão do ato
do outro e anulo o meu direito de expressar minha insatisfação perante àquele
ato. Que grande perdão é este, no qual nego o outro e a mim mesmo? Que grande
confraternização de indivíduos arrogantes em negar seus medos é esta e o que de
fato está sendo compartilhado senão a anulação do eu mesmo e do outro? Por que
se teme tanto ser humano?
Sim,
parece-me que o que o ser humano mais tem medo é, justamente, de ser humano.
Passamos tanto tempo procurando algo para acreditarmos - nos alienando cada vez
mais -, para justificar nossa busca obsessiva por sermos perfeitos,
que há séculos não tentamos mais ser aquilo que somos realmente: seres humanos,
suscetíveis a falhas, inseguranças e medos. Criticamos a tudo e todos por nos
causarem estes medos e por tentarem nos controlar com estes medos e não
percebemos que nós mesmos criamos estes medos e que nós mesmos demandamos
estas alienações a qualquer custo, seja pela fé, pelo consumismo ou de
tantas outras maneiras para que não tenhamos que nos confrontar com aquilo
que mais parece nos incomodar: o fato que somos meros mortais e somos
responsáveis por nossas próprias escolhas e pelas consequências delas.
Chega
a semana final do ano e busca-se pensar quão perto estivemos das expectativas
que traçamos no fim do ano anterior (as famosas promessas de fim de ano) e
nenhuma dessas promessas parece levar em conta a única que deveríamos fazer:
ser mais humano. Quanto tempo do ano você investiu para conhecer melhor você
mesmo e os outros a seu redor tentando ir além daquilo que você espera ver no
outro e daquilo que o outro espera que você veja nele? Quanto tempo você
dedicou a saber o que está acontecendo no mundo, ainda que seja pelo simples
fato de saber, para constatar que você não vive em uma ilha e quantas vezes
você se deu conta que suas ações afetam o outro e você é afetado pelas ações dos
outros?
Não
é mistério entender por que se rejeita tanto a ideia de ser humano, duvidar e
questionar causa medo, com certeza, e não há a menor garantia que qualquer
pergunta que se faça terá resposta. No entanto, antes uma vida cheia de
questionamentos sendo humano, do que uma cheia de certezas sendo mais um na
multidão de seres "perfeitos".
Àqueles
que preferirem continuar sem se questionar, uma Feliz Alienação e um Repetido
Ano Novo.