Recentemente
compartilhei um post (http://migre.me/rC39H)
sobre uma matéria no Fantástico que (além da agressão as pessoas trans em outro
quadro), resolveu fazer um quadro no melhor estilo “Dia da Princesa” na sua
revista semanal. O post trazia, em linhas muito gerais (muito mesmo), a ideia
da mais-valia, um dos conceitos centrais da economia política marxista, pois
relatava que, no quadro em questão, um chefe executivo tinha passado uma semana
fazendo trabalhos braçais e convivendo mais diretamente com a realidade desses trabalhadores
e ao final do período afirmou “Eu nunca trabalhei tanto na minha vida”. A
frase, no contexto em que foi proferida, é símbolo do sistema econômico em que
vivemos.
Uma
das reações a esse post foi outro, em resposta, colocando que o chefe deu conta
dos serviços e questionando quantos funcionários dariam conta do trabalho com
alguns minutos de explicação. Até aí seria uma questão simples de esclarecer o
mal entendido. A crítica era relacionada ao conceito da mais-valia (vou
explicar abaixo o que é), pelo fato de muitos patrões por aí receberem muito e
acharem justos os salários de seus empregados que trabalham - fisica e
mentalmente - intensamente e não à qualidade do trabalho desempenhado. Uma
breve resposta nos comentários serviria para esclarecer isso e a vida continua.
No
entanto, uma provocação (no sentido reflexivo, não no ofensivo) me fez
acreditar que seria interessante escrever algo sobre isso, pois me parece que
pode ser um engano comum para muitas pessoas: a ideia de que a crítica à
exploração e a opressão (nesse caso mais específico, na esfera do trabalho) é
queda de braço política entre esquerda e direita. Além disso, de que nós, da
esquerda, estamos querendo colocar todos os patrões em postes e linchá-los (uma
dica, não somos nós que costumamos fazer isso). Vale lembrar que nossa “briga”
é com o patrão explorador e opressor. Aquele que tem de seus funcionários o
feedback de que suas condições de trabalho e emprego são dignas e justas não
deveria se preocupar com nossa crítica, deveria se preocupar em lutar para que
outros ambientes fossem assim também.
Falando
sobre a mais-valia, um dos pilares do capitalismo é a apropriação do meio de
produção. É, dessa forma, retirado do trabalhador aquilo que garantiria seu
sustento para que, ao invés de produzir sua subsistência, o trabalhador tenha
que vender sua força de trabalho para alguém que tem aquilo que ele precisa
para sobreviver.
O
trabalhador, portanto, deveria ter que trabalhar apenas o suficiente para lhe
garantir sua subsistência e de sua família, mas isso não garantiria o lucro
necessário às empresas e, sendo assim, esses trabalhadores, além de produzir
seu sustento (mal e porcamente, na grande maioria das vezes), precisam gerar
excedente de trabalho para que a empresa possa lucrar. A esse excedente de
trabalho dá-se o nome de mais-valia.
Em
outras palavras, grosso modo, o trabalhador produz mais do que aquilo que seria
necessário para sua sobrevivência (se precisa produzir x carros para pagar suas
contas e ter alguma qualidade de vida com sua família, produz x + y para
garantir sua subsistência e gerar (mais) lucro para empresa - que já o teria
com os carros produzidos inicialmente). Essa exploração se dá estendendo as
horas de trabalho sem aumentar o salário (as jornadas ilegalmente extensas,
como é o caso do trabalho escravo; horas extras não remuneradas, etc) ou,
inserindo tecnologia para que o trabalhador produza mais em menos tempo, essa
inserção sendo frequentemente acompanhada por controles rigorosos, como é o
caso do registro em cronômetro do tempo que um operador de telemarketing fica
no banheiro, por exemplo.
É
comum ouvir coisas como “a vida que temos hoje só é possível por causa do
capitalismo”. Que vida é essa? A dos ricos e a minha, de classe média? E a dos
6% de brasileiros que vivem em extrema pobreza e os 18% em situação de
pobreza?[1] E os 920 milhões de pessoas no mundo que vivem abaixo do limiar de
1,25 dólar por dia?[2] Só a fome matava uma criança a cada seis segundos no
mundo em 2010.[3]
O
capitalismo permitiu que tivéssemos esses avanços tecnológicos e melhorássemos
nossa qualidade de vida, alguns afirmam. Ainda assim, só no Brasil as mortes
por depressão cresceram 705% em 2014.[4] No mundo, a cada 40 segundos alguém
comete suicídio e o Brasil é o 8º lugar nessa lista.[5] Estou citando,
propositadamente esses dois dados, porque em um sistema tão benéfico e
benevolente as pessoas deveriam estar muito felizes.
Dois
casos recentes na mídia ilustram muito bem a opressão e exploração do capital e
a lógica perversa que embasa as decisões desse sistema. A primeira refere-se ao
aumento de 5000% no valor de um medicamento para toxosplamase nos EUA após uma
empresa farmacêutica comprar sua patente.[6] Outros pilares centrais da lógica
do capital, além da já citada apropriação do meio de produção, são os fetiches
do Estado mínimo e da “lei da oferta e procura”, brutalmente exemplificados
nessa notícia.
“Isso
é ser imoral, não tem nada a ver com capitalismo!” Que é imoral, não há
dúvidas, no entanto, sem regulação do Estado, uma empresa pode subir o preço de
seu produto baseada na desculpa da demanda, da oferta e procura, das
dificuldades financeiras ou qualquer outro argumento que sirva para disfarçar a
obsessão pelo lucro. Isso fica bem claro na notícia acima quando o presidente
da farmacêutica em questão afirma que “medicamentos muito bem-sucedidos, como o
Viagra, geram bastante dinheiro, mas droga para doenças raras são menos
atraentes, porque menos pessoas as usam e torna-las lucrativas é mais difícil”.
Para quem tenta buscar algum conforto pensando que isso é um caso isolado,
sugiro ir na farmácia comprar um remédio que não esteja disponível na lista do
SUS para perceber que a lógica do sujeito é a lógica da indústria farmacêutica,
que é a lógica do capital.
O
outro caso recente na mídia é o dos juros de 403,5% ao ano do cartão de crédito
brasileiro[7], que reflete outra realidade do sistema capitalista: os
oligopólios e, novamente, a falta de regulação sobre as taxas cobradas. No
oligopólio, poucas empresas oferecem um serviço, o que diminui a concorrência e
aumenta os “acordos de cavalheiros” entre os figurões para garantir seus lucros
repassando o prejuízo ao consumidor. A desculpa dos bancos para esses juros
exorbitantes é de que a inadimplência é alta, o que afeta o spread bancário. O
spread bancário é a diferença entre os juros que a instituição financeira cobra
dos clientes e que o paga para captar o dinheiro[8].
A
inadimplência brasileira, era de 3,1%, em contraste aos 7,8% na Itália, por
exemplo, em 2014, que cobra juros mais baixos que os nossos[9]. Se a
inadimplência não é tão elevada como dizem, o que justifica os juros? O que
eles não contam é que no cálculo do spread entram também os lucros dos bancos.
E esses lucros, desde 2010, representam 1/3 do spread.[10] Os juros não são os
únicos responsáveis pelos lucros dos bancos, mas não é curioso que os bancos
brasileiros, em pleno desespero econômico dos trabalhadores e desempregados de
classe média e baixa, tenham atingido lucros exorbitantes no primeiro semestre
de 2015?[11],[12]
“Ah,
mas isso é coisa do capitalismo selvagem, só essas grandes empresas são assim!”
O Brasil tem uma das maiores diferenças salariais entre a base e o topo. No
Brasil, um profissional com um cargo de liderança, como gerência ou diretoria
de departamento, recebe quase 14 vezes o salário de um funcionário de nível
operacional, como operadores de máquinas. Isso faz do Brasil o décimo país com
a maior diferença entre um nível e outro. Um profissional de alto escalão no
Brasil recebe 67% do que ganha um profissional do mesmo nível na Suíça. Já um
funcionário de nível operacional brasileiro ganha apenas 14% do que o recebido
por alguém no mesmo cargo no país europeu.[13]
“A
esquerda, os comunistas, querem que as pessoas ganhem dinheiro sem trabalhar.
Vamos ficar sustentando vagabundos. No capitalismo as pessoas tem que trabalhar
para conseguir seu dinheiro e só aqueles que se esforçam conseguem”. De todos
os devaneios capitalistas, a meritocracia é, de longe, a mais desconectada da
realidade e uma das leituras mais perversas de mundo que se pode fazer. Pra
começo de conversa, os 0,9% mais ricos do País (zero vírgula nove, isso mesmo)
detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza[14], sendo as principais fontes de
acumulação de riqueza os fluxos de renda e heranças. Realmente, deve exigir um
trabalho descomunal receber uma herança (eu sei que alguém teve que trabalhar -
ou fazer os acordos certos - para ter esse dinheiro, mas se quem o tem agora, o
tem sem fazer nada, onde fica a meritocracia?).
Obviamente,
existirão as exceções – e é crucial que fique claro que são isso, exceções – de
pessoas que suaram sua camisa, deram duro, passaram por todo tipo de perrengue
para conseguir ter sua fortuna. Mas será que essas que conseguiram, o fizeram
por se esforçar mais do que a dona Maria ou seu João que acordam as 4:30 da
manhã pra dar de comer pros filhos antes desses irem pra escola, pegam 2, 3
ônibus para ir para suas jornadas duplas e triplas e receber uma miséria? Ou
ainda, ter seu salário reduzido por ser mulher, negr@ ou lgbt? Ou conseguiram
porque tiveram seu acesso garantido a escolas, não tinham que se preocupar todo
dia se teriam o que comer o dia seguinte ou se conseguiriam garantir o lanche
do filho na escola? É justo pegar casos individuais para defender um sistema que
produz esse tipo de desigualdade?
Eu
era mais merecedor que tantos outros trabalhadores de trabalhar em um banco
seis horas diárias em ambiente climatizado e com condições ergonômicas
minimamente adequadas recebendo uma bolsa-auxílio (o “salário” do estagiário)
que chegava a ser duas vezes mais o que muitos trabalhadores do terceiro setor
recebem para trabalhar, no mínimo, oito horas? Facilmente eu poderia acreditar
que eu tinha conseguido aquilo porque me esforcei mais, porque eu merecia. E
ignorar o fato de que sou homem, hetero, branco, nascido em uma família com
condições financeiras estáveis o suficiente para garantir que minha única
preocupação fosse estudar para uma prova.
Ainda
falando de “esforço”. Só entre os professores da educação básica, 40% fazem
jornada dupla ou tripla (trabalhando até 12 horas por dia).[15] A jornada de
trabalho de uma mulher que tenha filh@ chega a 13 horas diária, dividida entre
os afazeres domesticos, cuidar d@(s) filh@(s), deslocamento para o trabalho
assalariado e desempenho da função nesse local. Ah, e detalhe, as mulheres
latino-americanas ganham menos, mesmo que possuam um maior nível de
instrução.[16]
Por
meio de comparação simples dos salários médios, foi constatado que os homens
ganham 10% a mais que as mulheres. Já quando a comparação envolve homens e
mulheres com a mesma idade e nível de instrução, essa diferença sobe para 17%.
Só no Brasil os níveis de disparidade salarial estão entre os maiores da
América Latina. No país, os homens ganham aproximadamente 30% a mais que as
mulheres de mesma idade e nível de instrução. Citando outros grupos, a
população indígena e negra ganha em média 28% menos que a população branca de
mesma idade e nível de instrução.[17]
O
capitalismo propicia muitas coisas, de fato. Uma delas é a manutenção do
trabalho escravo mesmo quando a escravidão já foi abolida. O Brasil tem mais de
150 mil pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão.[18] A cada dia,
mais de 5 pessoas são libertadas, em média, no país, de condições degradantes
de trabalho.[19] A maioria é composta por imigrantes ilegais ou migrantes do
Norte do país, negr@s ou pard@s e pobres.[20]
Em
2015, 420 pessoas físicas e pessoas jurídicas constaram na lista de
empregadores com trabalho escravo.[21] De 2010 a 2015, esse tipo de violência
foi flagrada em uma infinidade de coronéis do agronegócio (latifundiários,
atualmente quase todos herdeiros) na construtora MRV, M. Officer, Luigi
Bertolli, C&A, Zara, Pernambucanas, no IBGE, Marisa, etc.[22] Num caso
recente, fiscais do Ministério do Trabalho flagraram 263 adolescentes em
trabalho irregular em 14 estabelecimentos, em Porto Alegre, da Arcos Dourados,
dona da franquia da rede McDonald’s.[23] Isso só pra citar casos brasileiros.
Quer
dizer, então, que devemos rasgar nossas roupas e jogar nossos celulares no
lixo? Que não devemos consumir nada e viver fazendo voto de pobreza? (Ainda tô
esperando alguém me mandar o texto comunista que fala que os comunistas devem
viver na pobreza). O que já foi comprado já alimentou a cadeia. Agora, sabendo
disso, continuar consumindo e dando lucro pros exploradores e escravizadores é
mais que alienação, é perversão. Demonstrar repúdio a empresas que se utilizam
dessa prática e boicotá-las é uma obrigação moral e cívica.
Exigir
que – para que você possa consumir o que você deseja (não vou nem entrar na
questão do consumismo no capitalismo) – este produto tenha sido feito, em todas
suas etapas, por pessoas em condições dignas de vida e conscientes de seus
direitos é o mínimo que poderia se esperar de SER humano. Enquanto o que
prevalecer forem as lógicas do consumismo, individualismo, “liberdade”,
meritocracia e o lucro acima de qualquer coisa sempre haverá cada vez mais
espaço para a opressão, exploração, desigualdade e violência.
Portanto,
não se trata de queda de braço entre esquerda e direita ou esse Fla x Flu que
vemos na política. A esquerda de fato (não esse absurdo midiático e reacionário
de colocar o PT como esquerda) não luta pela política institucional. Esse é
apenas um dos vários meios encontrados para que possamos confrontar o
capitalismo e o conservadorismo. Nossa luta é contra o extermínio humano e a
favor da liberdade enquanto sociedade (não essa liberdade individualista do
capitalismo) e da igualdade de direitos e não de pessoas iguais (como se vê
cada vez mais no conservadorismo neoliberal). Isto posto, não me resta dúvidas:
a saída para a crise mundial das relações humanas é à esquerda e contra o
capitalismo.
[1] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-o-numero-de-brasileiros-em-situacao-de-pobreza-extrema,1625182
[5] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/09/brasil-e-o-8-pais-com-mais-suicidios-no-mundo-aponta-relatorio-da-oms.html
[6] http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/09/e-justo-uma-empresa-subir-preco-de-um-remedio-em-5000-seu-presidente-defende-que-sim.html
[7] http://www.valor.com.br/financas/4237810/juro-do-cartao-de-credito-bate-recorde-e-passa-de-400-ao-ano
[8]http://www.bancarioscampinas.org.br/index.php?id=53&tx_ttnews%5Btt_news%5D=3153&cHash=ac923d70815c017828c6c57ff6b2a911
[10] http://g1.globo.com/economia/mercados/noticia/2011/11/peso-do-lucro-bancario-no-spread-sobe-para-13-do-total-em-2010-diz-bc.html
[11] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1625227-bancos-privados-aumentam-lucro-com-juros-maiores-e-calote-estavel.shtml
[12] http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2015/08/mesmo-diante-de-crise-lucro-dos-bancos-nao-para-de-crescer.html
[13] http://www.valor.com.br/carreira/3141332/brasil-tem-uma-das-maiores-diferencas-salariais-entre-base-e-o-topo
[14] http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FOs-limites-atuais-da-distribuicao-de-renda-e-riqueza-no-Brasil%2F7%2F32456
[15] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1649541-quatro-em-dez-professores-fazem-jornada-extra-para-compor-renda.shtml
[16] http://odia.ig.com.br/noticia/mundoeciencia/2015-03-07/jornada-de-trabalho-das-mulheres-pode-somar-13-horas-entre-casa-e-escritorio.html
[17] http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-recebem-salarios-30-maiores-que-as-mulheres-no-brasil/
[21] http://reporterbrasil.org.br/2015/09/lista-de-transparencia-sobre-trabalho-escravo-traz-nomes-flagrados-por-esse-crime/
[22] http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/o-que-a-zara-e-5-grifes-fazem-mesmo-com-o-trabalho-escravo
[23] http://economia.ig.com.br/empresas/2015-09-21/mte-flagra-263-adolescentes-trabalhando-em-condicoes-inadequadas-no-mc-donalds.html