quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Por que lutar contra o capitalismo?

Recentemente compartilhei um post (http://migre.me/rC39H) sobre uma matéria no Fantástico que (além da agressão as pessoas trans em outro quadro), resolveu fazer um quadro no melhor estilo “Dia da Princesa” na sua revista semanal. O post trazia, em linhas muito gerais (muito mesmo), a ideia da mais-valia, um dos conceitos centrais da economia política marxista, pois relatava que, no quadro em questão, um chefe executivo tinha passado uma semana fazendo trabalhos braçais e convivendo mais diretamente com a realidade desses trabalhadores e ao final do período afirmou “Eu nunca trabalhei tanto na minha vida”. A frase, no contexto em que foi proferida, é símbolo do sistema econômico em que vivemos.
Uma das reações a esse post foi outro, em resposta, colocando que o chefe deu conta dos serviços e questionando quantos funcionários dariam conta do trabalho com alguns minutos de explicação. Até aí seria uma questão simples de esclarecer o mal entendido. A crítica era relacionada ao conceito da mais-valia (vou explicar abaixo o que é), pelo fato de muitos patrões por aí receberem muito e acharem justos os salários de seus empregados que trabalham - fisica e mentalmente - intensamente e não à qualidade do trabalho desempenhado. Uma breve resposta nos comentários serviria para esclarecer isso e a vida continua.
No entanto, uma provocação (no sentido reflexivo, não no ofensivo) me fez acreditar que seria interessante escrever algo sobre isso, pois me parece que pode ser um engano comum para muitas pessoas: a ideia de que a crítica à exploração e a opressão (nesse caso mais específico, na esfera do trabalho) é queda de braço política entre esquerda e direita. Além disso, de que nós, da esquerda, estamos querendo colocar todos os patrões em postes e linchá-los (uma dica, não somos nós que costumamos fazer isso). Vale lembrar que nossa “briga” é com o patrão explorador e opressor. Aquele que tem de seus funcionários o feedback de que suas condições de trabalho e emprego são dignas e justas não deveria se preocupar com nossa crítica, deveria se preocupar em lutar para que outros ambientes fossem assim também.
Falando sobre a mais-valia, um dos pilares do capitalismo é a apropriação do meio de produção. É, dessa forma, retirado do trabalhador aquilo que garantiria seu sustento para que, ao invés de produzir sua subsistência, o trabalhador tenha que vender sua força de trabalho para alguém que tem aquilo que ele precisa para sobreviver.
O trabalhador, portanto, deveria ter que trabalhar apenas o suficiente para lhe garantir sua subsistência e de sua família, mas isso não garantiria o lucro necessário às empresas e, sendo assim, esses trabalhadores, além de produzir seu sustento (mal e porcamente, na grande maioria das vezes), precisam gerar excedente de trabalho para que a empresa possa lucrar. A esse excedente de trabalho dá-se o nome de mais-valia.
Em outras palavras, grosso modo, o trabalhador produz mais do que aquilo que seria necessário para sua sobrevivência (se precisa produzir x carros para pagar suas contas e ter alguma qualidade de vida com sua família, produz x + y para garantir sua subsistência e gerar (mais) lucro para empresa - que já o teria com os carros produzidos inicialmente). Essa exploração se dá estendendo as horas de trabalho sem aumentar o salário (as jornadas ilegalmente extensas, como é o caso do trabalho escravo; horas extras não remuneradas, etc) ou, inserindo tecnologia para que o trabalhador produza mais em menos tempo, essa inserção sendo frequentemente acompanhada por controles rigorosos, como é o caso do registro em cronômetro do tempo que um operador de telemarketing fica no banheiro, por exemplo.
É comum ouvir coisas como “a vida que temos hoje só é possível por causa do capitalismo”. Que vida é essa? A dos ricos e a minha, de classe média? E a dos 6% de brasileiros que vivem em extrema pobreza e os 18% em situação de pobreza?[1] E os 920 milhões de pessoas no mundo que vivem abaixo do limiar de 1,25 dólar por dia?[2] Só a fome matava uma criança a cada seis segundos no mundo em 2010.[3]
O capitalismo permitiu que tivéssemos esses avanços tecnológicos e melhorássemos nossa qualidade de vida, alguns afirmam. Ainda assim, só no Brasil as mortes por depressão cresceram 705% em 2014.[4] No mundo, a cada 40 segundos alguém comete suicídio e o Brasil é o 8º lugar nessa lista.[5] Estou citando, propositadamente esses dois dados, porque em um sistema tão benéfico e benevolente as pessoas deveriam estar muito felizes.
Dois casos recentes na mídia ilustram muito bem a opressão e exploração do capital e a lógica perversa que embasa as decisões desse sistema. A primeira refere-se ao aumento de 5000% no valor de um medicamento para toxosplamase nos EUA após uma empresa farmacêutica comprar sua patente.[6] Outros pilares centrais da lógica do capital, além da já citada apropriação do meio de produção, são os fetiches do Estado mínimo e da “lei da oferta e procura”, brutalmente exemplificados nessa notícia.
“Isso é ser imoral, não tem nada a ver com capitalismo!” Que é imoral, não há dúvidas, no entanto, sem regulação do Estado, uma empresa pode subir o preço de seu produto baseada na desculpa da demanda, da oferta e procura, das dificuldades financeiras ou qualquer outro argumento que sirva para disfarçar a obsessão pelo lucro. Isso fica bem claro na notícia acima quando o presidente da farmacêutica em questão afirma que “medicamentos muito bem-sucedidos, como o Viagra, geram bastante dinheiro, mas droga para doenças raras são menos atraentes, porque menos pessoas as usam e torna-las lucrativas é mais difícil”. Para quem tenta buscar algum conforto pensando que isso é um caso isolado, sugiro ir na farmácia comprar um remédio que não esteja disponível na lista do SUS para perceber que a lógica do sujeito é a lógica da indústria farmacêutica, que é a lógica do capital.
O outro caso recente na mídia é o dos juros de 403,5% ao ano do cartão de crédito brasileiro[7], que reflete outra realidade do sistema capitalista: os oligopólios e, novamente, a falta de regulação sobre as taxas cobradas. No oligopólio, poucas empresas oferecem um serviço, o que diminui a concorrência e aumenta os “acordos de cavalheiros” entre os figurões para garantir seus lucros repassando o prejuízo ao consumidor. A desculpa dos bancos para esses juros exorbitantes é de que a inadimplência é alta, o que afeta o spread bancário. O spread bancário é a diferença entre os juros que a instituição financeira cobra dos clientes e que o paga para captar o dinheiro[8].
A inadimplência brasileira, era de 3,1%, em contraste aos 7,8% na Itália, por exemplo, em 2014, que cobra juros mais baixos que os nossos[9]. Se a inadimplência não é tão elevada como dizem, o que justifica os juros? O que eles não contam é que no cálculo do spread entram também os lucros dos bancos. E esses lucros, desde 2010, representam 1/3 do spread.[10] Os juros não são os únicos responsáveis pelos lucros dos bancos, mas não é curioso que os bancos brasileiros, em pleno desespero econômico dos trabalhadores e desempregados de classe média e baixa, tenham atingido lucros exorbitantes no primeiro semestre de 2015?[11],[12]
“Ah, mas isso é coisa do capitalismo selvagem, só essas grandes empresas são assim!” O Brasil tem uma das maiores diferenças salariais entre a base e o topo. No Brasil, um profissional com um cargo de liderança, como gerência ou diretoria de departamento, recebe quase 14 vezes o salário de um funcionário de nível operacional, como operadores de máquinas. Isso faz do Brasil o décimo país com a maior diferença entre um nível e outro. Um profissional de alto escalão no Brasil recebe 67% do que ganha um profissional do mesmo nível na Suíça. Já um funcionário de nível operacional brasileiro ganha apenas 14% do que o recebido por alguém no mesmo cargo no país europeu.[13]
“A esquerda, os comunistas, querem que as pessoas ganhem dinheiro sem trabalhar. Vamos ficar sustentando vagabundos. No capitalismo as pessoas tem que trabalhar para conseguir seu dinheiro e só aqueles que se esforçam conseguem”. De todos os devaneios capitalistas, a meritocracia é, de longe, a mais desconectada da realidade e uma das leituras mais perversas de mundo que se pode fazer. Pra começo de conversa, os 0,9% mais ricos do País (zero vírgula nove, isso mesmo) detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza[14], sendo as principais fontes de acumulação de riqueza os fluxos de renda e heranças. Realmente, deve exigir um trabalho descomunal receber uma herança (eu sei que alguém teve que trabalhar - ou fazer os acordos certos - para ter esse dinheiro, mas se quem o tem agora, o tem sem fazer nada, onde fica a meritocracia?).
Obviamente, existirão as exceções – e é crucial que fique claro que são isso, exceções – de pessoas que suaram sua camisa, deram duro, passaram por todo tipo de perrengue para conseguir ter sua fortuna. Mas será que essas que conseguiram, o fizeram por se esforçar mais do que a dona Maria ou seu João que acordam as 4:30 da manhã pra dar de comer pros filhos antes desses irem pra escola, pegam 2, 3 ônibus para ir para suas jornadas duplas e triplas e receber uma miséria? Ou ainda, ter seu salário reduzido por ser mulher, negr@ ou lgbt? Ou conseguiram porque tiveram seu acesso garantido a escolas, não tinham que se preocupar todo dia se teriam o que comer o dia seguinte ou se conseguiriam garantir o lanche do filho na escola? É justo pegar casos individuais para defender um sistema que produz esse tipo de desigualdade?
Eu era mais merecedor que tantos outros trabalhadores de trabalhar em um banco seis horas diárias em ambiente climatizado e com condições ergonômicas minimamente adequadas recebendo uma bolsa-auxílio (o “salário” do estagiário) que chegava a ser duas vezes mais o que muitos trabalhadores do terceiro setor recebem para trabalhar, no mínimo, oito horas? Facilmente eu poderia acreditar que eu tinha conseguido aquilo porque me esforcei mais, porque eu merecia. E ignorar o fato de que sou homem, hetero, branco, nascido em uma família com condições financeiras estáveis o suficiente para garantir que minha única preocupação fosse estudar para uma prova.
Ainda falando de “esforço”. Só entre os professores da educação básica, 40% fazem jornada dupla ou tripla (trabalhando até 12 horas por dia).[15] A jornada de trabalho de uma mulher que tenha filh@ chega a 13 horas diária, dividida entre os afazeres domesticos, cuidar d@(s) filh@(s), deslocamento para o trabalho assalariado e desempenho da função nesse local. Ah, e detalhe, as mulheres latino-americanas ganham menos, mesmo que possuam um maior nível de instrução.[16]
Por meio de comparação simples dos salários médios, foi constatado que os homens ganham 10% a mais que as mulheres. Já quando a comparação envolve homens e mulheres com a mesma idade e nível de instrução, essa diferença sobe para 17%. Só no Brasil os níveis de disparidade salarial estão entre os maiores da América Latina. No país, os homens ganham aproximadamente 30% a mais que as mulheres de mesma idade e nível de instrução. Citando outros grupos, a população indígena e negra ganha em média 28% menos que a população branca de mesma idade e nível de instrução.[17]
O capitalismo propicia muitas coisas, de fato. Uma delas é a manutenção do trabalho escravo mesmo quando a escravidão já foi abolida. O Brasil tem mais de 150 mil pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão.[18] A cada dia, mais de 5 pessoas são libertadas, em média, no país, de condições degradantes de trabalho.[19] A maioria é composta por imigrantes ilegais ou migrantes do Norte do país, negr@s ou pard@s e pobres.[20]
Em 2015, 420 pessoas físicas e pessoas jurídicas constaram na lista de empregadores com trabalho escravo.[21] De 2010 a 2015, esse tipo de violência foi flagrada em uma infinidade de coronéis do agronegócio (latifundiários, atualmente quase todos herdeiros) na construtora MRV, M. Officer, Luigi Bertolli, C&A, Zara, Pernambucanas, no IBGE, Marisa, etc.[22] Num caso recente, fiscais do Ministério do Trabalho flagraram 263 adolescentes em trabalho irregular em 14 estabelecimentos, em Porto Alegre, da Arcos Dourados, dona da franquia da rede McDonald’s.[23] Isso só pra citar casos brasileiros.
Quer dizer, então, que devemos rasgar nossas roupas e jogar nossos celulares no lixo? Que não devemos consumir nada e viver fazendo voto de pobreza? (Ainda tô esperando alguém me mandar o texto comunista que fala que os comunistas devem viver na pobreza). O que já foi comprado já alimentou a cadeia. Agora, sabendo disso, continuar consumindo e dando lucro pros exploradores e escravizadores é mais que alienação, é perversão. Demonstrar repúdio a empresas que se utilizam dessa prática e boicotá-las é uma obrigação moral e cívica.
Exigir que – para que você possa consumir o que você deseja (não vou nem entrar na questão do consumismo no capitalismo) – este produto tenha sido feito, em todas suas etapas, por pessoas em condições dignas de vida e conscientes de seus direitos é o mínimo que poderia se esperar de SER humano. Enquanto o que prevalecer forem as lógicas do consumismo, individualismo, “liberdade”, meritocracia e o lucro acima de qualquer coisa sempre haverá cada vez mais espaço para a opressão, exploração, desigualdade e violência.
Portanto, não se trata de queda de braço entre esquerda e direita ou esse Fla x Flu que vemos na política. A esquerda de fato (não esse absurdo midiático e reacionário de colocar o PT como esquerda) não luta pela política institucional. Esse é apenas um dos vários meios encontrados para que possamos confrontar o capitalismo e o conservadorismo. Nossa luta é contra o extermínio humano e a favor da liberdade enquanto sociedade (não essa liberdade individualista do capitalismo) e da igualdade de direitos e não de pessoas iguais (como se vê cada vez mais no conservadorismo neoliberal). Isto posto, não me resta dúvidas: a saída para a crise mundial das relações humanas é à esquerda e contra o capitalismo.


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