sábado, 6 de fevereiro de 2016

O mentalismo como ferramenta de opressão

Quando iniciei Psicologia um fato me preocupava, mesmo conhecendo muito pouco (mais próximo de nada, sendo sincero) desta área do saber. A única informação que eu tinha é que na Psicologia se falava muito do tal do inconsciente e da mente - e isso me incomodava. Não sabia dizer direito o motivo, mas usar o inconsciente e a mente sempre me parecia inadequado ou insuficiente para explicar porque as pessoas agem como agem.
Contraditório como possa soar, a principal razão que me levou a cursar dois anos e meio de Engenharia e a prestar vestibular para Física é a mesma que me levou à Psicologia. Eu queria entender como o cérebro funcionava para entender porque as pessoas faziam o que faziam. Achava que para isso deveria entender como funcionam circuitos elétricos e depois achei que tinha que entender física quântica. Talvez esses raciocínios não estivessem inteiramente errados, mas, na realidade, o que eu queria entender é porque as pessoas se comportam como se comportam.
A insatisfação com possíveis respostas que poderiam ser dadas pelas ciências exatas já revelava ali, de maneira mais incipiente, a minha resistência ao mentalismo e ao internalismo, como também se expressou nas biológicas e humanas. Explicações que viessem do cérebro, da fisiologia, da biologia, do fato social etc. não poderiam ser suficientes para contemplar a complexidade do comportamento humano e pareciam sempre deixar de lado, em maior ou menor grau, o ambiente.
Foi só no terceiro período de Psicologia, 8 anos depois de ter dado o primeiro passo nessa busca, que eu fui tomar conhecimento de que existia outra leitura - outra visão de mundo e de homem - sobre o comportamento humano: o Behaviorismo Radical.
Já de cara veio o primeiro “tapa”. É Radical por se opor radicalmente ao mentalismo. “Mas isso é possível?” - eu lembro de ter me questionado. É possível falar sobre comportamento sem ter que falar de coisas dentro da pessoa fazendo elas se comportarem? Sem falar em livre arbítrio, desejo, pulsão, inconsciente, mente, arquétipo, vontade e tantos outros termos desta sorte? A resposta, felizmente, foi um retumbante sim.
E foi além disso. Como visão de mundo, o behaviorismo de B.F. Skinner apontava no mentalismo uma série de prejuízos à sociedade, as quais, futuramente, fui enxergar em todas as formas de opressão presentes em nosso cotidiano.
Sedutoras como são as explicações que apelam ao interno, à essência ou a abstrações, com grande frequência me vinha um desconforto provocado pela sensação de que a defesa por essas explicações se dava muito mais no encontro de algo que era dito de modo aprazível, às vezes até romântico ou poético, e que a opção por defesa destas explicações se dava quase que por um “enamoramento” com a teoria, deixando, não raramente, de lado qualquer preocupação com a cientificidade exigida, em especial, ao se considerar que lidamos com o futuro de outras pessoas.
Obviamente, não se trata de generalizar todos os estudiosos dessa ou daquela linha a isso, mas as justificativas por defender esta ou aquela teoria (criticando o behaviorismo, muito frequentemente) são extremamente similares às justificativas usada por indivíduos com crenças religiosas para defender seus credos:
  • Mas não pode ser isso.” - com frequência reduzindo uma explicação contextualista por ela não ser descrita de maneira abstrata ou romantizada;
  • Você está sendo reducionista” - referindo-se às leis comportamentais que, como tentarei mostrar brevemente, favorecem muito mais o respeito à singularidade do que as teorias mentalistas;
  • Eu acredito nisso, você tem que respeitar.” - bem, Psicologia é ciência, não crença - e respeito não implica evitação da discussão e do apontamento de contradições;
  • Você não pode se fechar na ciência, o ser humano é mais que isso.” - demonstrando um conceito bastante equivocado do que é ciência - que já tratei em outro texto meu: http://migre.me/sU4No;
  • Funciona e faz bem para a pessoa.” - essa, pessoalmente, é uma das que mais me incomoda - não só se abre mão de investigar o processo pelo qual a pessoa “melhorou”, como se justifica os fins pelos meios e, além disso, a função última da terapia passa a ser “funcionar”, ou seja, torna-se utilitarista.
    Mas, afinal, qual o grande problema com explicações mentalistas e internalistas? Como isso pode favorecer a opressão? O primeiro grande entrave desse tipo de hipótese sobre o comportamento humano está na circularidade do argumento, como bem apontada por Matos (1995): “ao mesmo tempo em que essa alma ou mente causavam e explicavam o comportamento, esse comportamento era a única evidência desta alma ou desta mente” (ex.: sonhos e o inconsciente; força de vontade e sucesso; boa alma e bom comportamento, etc.).
    Outra questão está na insuficiência dessas explicações, uma vez que tendem a atribuir a eventos sem bases físicas ou materiais, a eventos fisiológicos ou a explicações conceituais sem puramente hipotéticas, a explicação de comportamentos, ignorando parcialmente - ou totalmente - o papel de determinantes ambientais. É perceptível a gravidade dessa lógica, se levarmos em consideração a frequência com a qual recorremos a ela para explicar nossas relações com o meio.
Temos sucesso porque nos esforçamos; o indivíduo é viciado pois lhe falta força de vontade; se acreditarmos teremos um resultado positivo; podemos fazer o que queremos, pois somos livres para escolher; vamos mal nos estudos porque somos preguiçosos; choramos porque estamos tristes; batemos em alguém porque sentimos raiva; comemos porque temos fome; a menina foi estuprada porque queria ser; o estuprador estuprou porque desejava aquela menina; o assassino mata porque é mau; o bandido rouba porque lhe falta deus no coração; o indivíduo é gay porque alguma parte do seu cérebro ou da sua genética é assim ou assado; o cara bem sucedido o é pois é inteligente; ajudamos os outros pois somos solidários; para termos sucesso temos que ser otimistas; somos influenciados por estruturas internas (perversas, neuróticas ou psicóticas) que irão nortear nosso funcionamento pelo resto da vida; desenvolvemos um tipo de personalidade na infância (ou já nascemos com ela, dependendo da linha) que irá nos influenciar pelo resto da vida; recebemos influência de arquétipos e complexos que irão influenciar em como agiremos; o negro é inferior e menos inteligente porque tem um cérebro menos desenvolvido; o cérebro da mulher faz com que ela seja mais falante e mais sensível; o cérebro do homem o torna mais agressivo… A lista renderia um livro.
James Holland, outro estudioso do Behaviorismo aponta, de maneira muito explícita, a opressão encoberta no mentalismo e no internalismo. Já citei este trecho uns dois textos atrás, mas acredito que a mensagem contida nele é fundamental para reforçar o problema dessas explicações e, portanto, vou usá-lo novamente:
“O mito das causas internas é alimentado devido ao reforçamento fornecido à elite e também devido ao papel que ele desempenha na manutenção do presente sistema. As pessoas que ocupam alta hierarquia no poder afirmam que atingiram essa posição elevada devido a um grande mérito pessoal. Os ricos têm liberdade de usar seus recursos internos, sua vontade, determinação, motivação e inteligência de forma a alcançarem seu alto nível. As causas internas servem como justificativa para aqueles que tiram proveito da desigualdade (...). Aos pobres é reservado um conjunto especial de causas internas. Diz-se que eles são preguiçosos, sem ambição, sem talento. Aqueles que extraem o máximo de nosso sistema social podem considerar punitivo encarar sua boa sorte como o resultado de um sistema que explora as pessoas menos privilegiadas e que cria a pobreza e a infelicidade. Se isso é verdade, as afirmações verbais que atribuem a posição de cada indivíduo na sociedade a traços pessoais, tanto inatos como resultantes de uma cultura menos desenvolvidas, seriam reforçadoras” (p.61, 1983).
    O que o autor afirma neste trecho é que defender explicações como a da meritocracia (se você não consegue o que quer, é porque não se esforça) é extremamente vantajoso para a elite, pois não só justifica e mantém a desigualdade do atual sistema, como isenta a sociedade e os indivíduos “bem-sucedidos” de ter que analisar as condições para seu sucesso e planejar ambientes que favoreçam a redução da pobreza, por exemplo.
Reproduzir este discurso, portanto produz consequências positivamente reforçadoras (ou seja, tornam mais prováveis a continuidade da repetição desse discurso pois apresentam algo desejável para a elite), à medida em que enaltecem e individualizam o sucesso de um sujeito e justificam, isolam, excluem e oprimem os que não atingem o sucesso (consequências negativamente reforçadoras para a elite, pois afastam algo aversivo, incômodo).
Este é apenas um exemplo, mas facilmente se pode aplicar o raciocínio aos outros exemplos de explicações mentalistas e internalistas aqui expostos. Skinner (1953/1965) defende que por não sermos capazes de observar um comportamento encoberto: “(...) somos encorajados a conferir-lhes [aos eventos internos] propriedades sem justificação. Pior ainda, podemos inventar causas deste tipo sem medo de contradição”.
A tendência animista (algo que é animado por uma essência - a alma, por exemplo) e supersticiosa das explicações mentalistas e internalistas isola completamente essas suposições do fazer ciência. Busca-se mais a legitimação de uma crença do que a investigação minuciosa e operacionalmente descrita do comportamento humano.
Além disso, defesas como as mentalistas e internalistas sempre pressupõem, em alguma medida, o dualismo. Mente x cérebro, corpo x alma, inconsciente x consciente, etc. Tal cisão já vem sendo amplamente contrariada pelos avanços das neurociências, bem como pelas explicações funcionais e contextuais do comportamento apresentadas pela Análise do Comportamento.
Por fim, um dos mais graves problemas do mentalismo e do internalismo é a adoção de termos altamente abstratos e sujeitos às mais diversas interpretações sendo, não raramente, utilizados para legitimar e justificar a opressão. O grave problema de um termo não operacionalizado, como o “bom senso” por exemplo, é a imensa gama de variáveis que podem afetar a compreensão que cada indivíduo terá deste termo. Uma descrição funcional e contextual de um comportamento evita em grande medida o perigo do viés “subjetivo” (muitas vezes utilizado para justificar um preconceito) na descrição de um comportamento.
Quando o Behaviorismo defende que todos os seres humanos estão sujeitos a leis comportamentais, contrário ao que os críticos afirmam, não se está reduzindo a singularidade humana - está se abrindo margem para que esta seja explorada da maneira mais profunda possível, uma vez que entender o comportamento de um indivíduo implica em entender que ele é produto de uma história genética, cultural e de reforçamento. Analisar apenas uma dessas esferas é fazer uma leitura incompleta e, portanto, reducionista, da complexidade humana.
Explicita-se, dessa forma, a lógica opressiva que o mentalismo e o internalismo - direta ou indiretamente - impõem sobre os indivíduos e porque, tão frequentemente, são estas as explicações utilizadas pelos opressores. É mais fácil afirmar que o indivíduo que vai mal nos estudos e larga a faculdade o faz porque é preguiçoso ou vagabundo do que analisar as condições ambientais que podem ter favorecido esse mal desempenho (ambiente familiar, método de ensino, estilo de aprendizagem, dentra tantas outras possíveis variáveis que poderiam ser levantadas em uma leitura funcional e contextual deste comportamento) e propor modificações que tornem o bom desempenho mais provável.
Nesse tipo de lógica, individualiza-se o problema, retirando-se a singularidade do sujeito. Isenta-se a sociedade de responsabilidade sobre sofrimentos que são, ao mesmo tempo, genéticos, culturais e individuais (jamais enfatizando um sobre o outro) e validando opressões históricas a partir de invenções explicativas que, por não terem base material, não podem ser contrapostas, caindo na lógica falaciosa do: “se você não pode provar que não existe, você não pode dizer que não existe”, sendo que a real questão aqui são as consequências reais causadas por estas visões de mundo.
Não se trata apenas de afirmar que não existe inconsciente, pulsões, força de vontade, livre arbítrio, alma etc. Trata-se de observar as consequências que a emissão desses comportamentos verbais têm na comunidade verbal em que ocorrem. O resultado, na avassaladora maioria das vezes, será a perpetuação de algum tipo de opressão que pode durar séculos.
A visão de mundo proposta pelo Behaviorismo Radical - a de que nos comportamos devido às consequências e não devido a agentes internos - é revolucionária, pois é radicalmente contrária aos discursos de liberdade (o livre-arbítrio, em especial), e às explicações causais mentalistas, essencialistas e internalistas do comportamento. A partir desta explicação o homem torna-se determinado por seu ambiente e pelas consequências nele produzidas. 
Dessa forma, como bem coloca Skinner: “Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são modificados pelas consequências de sua ação” (1957/1978, p.15). Micheletto & Sério (1993, p. 3) complementam:
“O homem constrói o mundo a sua volta, agindo sobre ele e, ao fazê-lo está também se construindo. Não se absolutiza nem o homem, nem o mundo; nenhum dos elementos da relação tem autonomia (...). A cada relação obtém-se, como produto, um ambiente e um homem diferentes”.
    O comportamento, portanto, é produto das interações organismo-ambiente, selecionado por suas consequências e não produto de alguma intencionalidade determinista, de forças de vontade, da alma, do inconsciente (ou termos afins). Skinner, seus antecessores e sucessores, dessa forma, propõem uma leitura de mundo que coloca o homem como medida das coisas - produtor e produto de seu ambiente -, porém, não de maneira isolada ou individualizada e sim como resultante da evolução das espécies, do seu aprendizado individual e, também, do aprendizado cultural. Todos com igual importância.
    Falei em meu último texto (http://migre.me/sU81g) sobre a importância de a revolução ser pautada por reforçadores positivos, ou, em termos mais conhecidos, pelo amor e não, pela coerção. Acredito que no que concerne o conteúdo verbal da coerção, o discurso mentalista e internalista se faz presente, de alguma forma, na maior parte das vezes.
Nem toda coerção é mentalista e internalista, mas com muita frequência esse tipo de explicação é coercitivo. Uma revolução pautada no rompimento com a coerção deve confrontar os principais mecanismos utilizados para oprimir os seres humanos. Outro elemento fundamental para a revolução, portanto, é o combate aos discursos mentalistas e internalistas e buscar explicações contextuais e funcionais para o comportamento humano, para que seja possível, finalmente, superar a desigualdade existente em nossa sociedade.

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Holland, J. G. (1983). Comportamentalismo: parte do problema ou parte da solução? Psicologia, 9(1), 59-75.
Matos, M. A. (1995). Behaviorismo metodológico e behaviorismo radical. Bernard Rangé (org.), Psicoterapia comportamental e cognitiva: pesquisa, prática, aplicações e problemas. Campinas: Editorial Psy.
Micheletto, N. & Sério, T. M. A. P. (1993). Homem: Objeto ou Sujeito para Skinner? Em: Temas em Psicologia – Análises da Análise do Comportamento: Do conceito à aplicação. Sociedade Brasileira de Psicologia, nº 2.
Skinner, B. F. (1978). Verbal behavior. New York: Appleton-Century-Crofts. (Trabalho original publicado em 1957).
Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York: Macmillan. (Trabalho original publicado em 1953).

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