terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Feliz Alienação e Um Repetido Ano Novo


Então, é Natal. 
Compartilhar, perdoar, confraternizar, tudo parece tão justo e correto e muitos sentem-se tão bem por acreditarem estar cumprindo com todas essas tarefas nesta data, mesmo que seja somente nela e mesmo que seja somente na própria interpretação. 
Acreditar (ou ter fé) parece ser o verbo chave desta época do ano, superando a necessidade de comprovação ou de alguma ação, de fato. Como disse Nietzsche: "Toda verdade na fé é infalível, ela cumpre aquilo que o crente espera encontrar nela. Porém, não oferece a mínima base para se estabelecer uma verdade objetiva". Afinal, o próprio Natal fundamenta-se em uma das maiores mentiras já contadas até hoje: a suposta data do nascimento do suposto salvador da humanidade. Devemos compartilhar, perdoar, confraternizar por que é isto que nos é dito que deve ser feito, por que é isto que a Bíblia diz que deve ser feito o que, independentemente de ser cristão ou não, influenciou por muitos séculos e ainda influencia os costumes e tradições de muitas culturas. A própria ideia de religião perdeu-se e, o que deveria remeter a uma reinterpretação ou releitura (religião, do latim relegere: reler) passou a ser tomado de maneira dogmática como uma leitura única e engessada. Mesmo a leitura romântica do termo (religião como originada do verbo latino religare - ligar-se de novo) é falha, no sentido que, ao invés de buscar religar-se com o próprio eu, o ser humano buscou uma ligação com algo totalmente externo a si mesmo, alienando-se fundamentalmente na própria crença.
O não perdoar, não compartilhar, não qualquer coisa que se acredite que deva ser feita nesta época (e, para muitos, somente nesta época) implica em não ser um bom cristão, ou um bom ser humano, afinal, perdoar é humano. No entanto, o que se observa frequentemente é a insistência na imposição destes valores carregados de expectativas (se eu perdôo, o outro TEM que aceitar este perdão; se eu proponho uma confraternização, todos TEM que participar desta, e assim por diante) em uma tentativa de mascarar as próprias falhas, inseguranças e medos.
E quanto medo sentimos... parece não haver limites para este sentimento que nos controla em todas as instâncias de nossas vidas e ao qual temos tremenda dificuldade em dar uma cara. Quando se pensa no medo, que por tanto tempo perdurou, e ainda perdura em menor escala, de ir para o inferno ou de ser punido por uma divindade caso não se cumprissem todas as demandas da religião que se optava seguir e quando observamos o medo de não ter o que acreditamos que o outro tem, alimentado pela mídia, em uma sociedade de consumidores, tal qual como a em que vivemos, não é tão complicado perceber do que temos tanto medo.
Fala-se tanto em perdoar no Natal, mas me parece que o ideal de perdão que existe é, no mínimo, falacioso. É uma mistura de aceitação arrogante com anulação do eu mesmo. Aceito o que o outro fez como se pudesse julgar toda a extensão do ato do outro e anulo o meu direito de expressar minha insatisfação perante àquele ato. Que grande perdão é este, no qual nego o outro e a mim mesmo? Que grande confraternização de indivíduos arrogantes em negar seus medos é esta e o que de fato está sendo compartilhado senão a anulação do eu mesmo e do outro? Por que se teme tanto ser humano?
Sim, parece-me que o que o ser humano mais tem medo é, justamente, de ser humano. Passamos tanto tempo procurando algo para acreditarmos - nos alienando cada vez mais -, para justificar nossa busca obsessiva por sermos perfeitos, que há séculos não tentamos mais ser aquilo que somos realmente: seres humanos, suscetíveis a falhas, inseguranças e medos. Criticamos a tudo e todos por nos causarem estes medos e por tentarem nos controlar com estes medos e não percebemos que nós mesmos criamos estes medos e que nós mesmos demandamos estas alienações a qualquer custo, seja pela fé, pelo consumismo ou de tantas outras maneiras para que não tenhamos que nos confrontar com aquilo que mais parece nos incomodar: o fato que somos meros mortais e somos responsáveis por nossas próprias escolhas e pelas consequências delas.
Chega a semana final do ano e busca-se pensar quão perto estivemos das expectativas que traçamos no fim do ano anterior (as famosas promessas de fim de ano) e nenhuma dessas promessas parece levar em conta a única que deveríamos fazer: ser mais humano. Quanto tempo do ano você investiu para conhecer melhor você mesmo e os outros a seu redor tentando ir além daquilo que você espera ver no outro e daquilo que o outro espera que você veja nele? Quanto tempo você dedicou a saber o que está acontecendo no mundo, ainda que seja pelo simples fato de saber, para constatar que você não vive em uma ilha e quantas vezes você se deu conta que suas ações afetam o outro e você é afetado pelas ações dos outros?
Não é mistério entender por que se rejeita tanto a ideia de ser humano, duvidar e questionar causa medo, com certeza, e não há a menor garantia que qualquer pergunta que se faça terá resposta. No entanto, antes uma vida cheia de questionamentos sendo humano, do que uma cheia de certezas sendo mais um na multidão de seres "perfeitos".
Àqueles que preferirem continuar sem se questionar, uma Feliz Alienação e um Repetido Ano Novo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Cultura do medo, sociedade de controle e o consumo de drogas


     Desemprego, assassinatos, sequestros, roubos, furtos, morte, escuro, inferno, solidão, poucos contatos nas redes sociais, ter baixo desempenho, não agradar, não ser reconhecido, não ter. Não é de hoje, contudo, que o ser humano vive em função do medo. Medo de ser comido, medo de forças que não se podia – e talvez ainda não se possa – compreender (a natureza) e outros temores mais instintivos parecem ter sido cruciais para a sobrevivência de nossa espécie. 
      No entanto, o que era uma reação de afastamento a um objeto real temido foi ganhando, na boca do povo, um caráter cada vez mais “romântico” ao qual se atribui a responsabilidade por muitos comportamentos que, devido a sua reprodução em larga escala, foram produzindo o pano de fundo para que o caos em que vivemos hoje se estabelecesse. Para se tentar entender o que alguém faz e como se sente quando o faz não se deve atribuir significado ao sentimento como sendo o responsável por aquilo que se faz e sim, entender os eventos ambientais que fizeram o sujeito agir e como se sentiu ao agir. 
     Voltando à lista do que se tem medo, não parece difícil vislumbrar quais são os eventos ambientais que tem sido cruciais, não só na atualidade, mas ao longo da história humana, para gerar tanto medo. O que parece ser ignorado é que este sentimento, ao tentar ser dotado de significado ou de “culpa” por um comportamento irá, invariavelmente, gerar desconforto, pois sendo o produto colateral do ambiente, não poderá ser compreendido de outra forma. Com frequência se escutam frases como “só depois penso no que fiz, parece que sou movido pelos meus sentimentos”, reforçando ainda mais a falsa ideia de que sentimentos causam comportamentos. Quanto mais se tenta compreender o medo por esse viés, mais distante se ficará de qualquer resposta e instaura-se então, o conflito. Da frustração pela não resolução deste conflito, o que era medo ganha um adendo: a ansiedade. A ameaça deixa de ser real, como era no tempo de nossos ancestrais das cavernas, e evolui para algo totalmente abstrato, como o medo de ser punido por divindades, de ser deixado para trás, de não ter em uma sociedade onde se “tem que ter”. 
      Frente a ameaças que não podem ser vistas resta apenas uma solução: a generalização de comportamentos de esquiva e de fuga visando unicamente o controle daquilo a que se atribui a culpa do sentimento de frustração. Desde Descartes vivemos sob a máxima do “penso, logo existo”, da dualidade razão vs. emoção, que prega que através do pensamento é possível controlar as emoções, mas parece que a necessidade de controle é bem anterior ao século XVI. As religiões mais antigas parecem ter em um de seus pilares mais sólidos a necessidade de controle do medo, seja de forças da natureza, de doenças, do envelhecimento ou dos predadores. O próprio agrupamento em tribos, base para as civilizações modernas, visava o controle do medo. 
      Entretanto, como já foi dito, o que era crucial para nossa sobrevivência e para a evolução de nossa espécie foi perdendo cada vez mais este caráter até atingir o estado de não sabermos mais afirmar com clareza do que temos medo e, ainda assim, buscamos controlar qualquer indício deste sentimento com grande afinco. Deleuze, filósofo francês, ao comentar as sociedades disciplinares de Foucalt, (sociedades estas situadas entre os séculos VII e XX, atingindo o seu apogeu no início do século XX, em que a organização da sociedade se dava através dos grandes meios de confinamento – o indivíduo passava de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola, depois a fábrica, eventualmente o hospital e até mesmo a prisão) afirma que todos esses meios de confinamento entraram em crise. Atualmente, propõem-se reformas de todas essas instituições e o caos generaliza-se cada vez mais formando o que o filósofo chama de sociedades de controle. Nestas, os espaços são interpenetrados, sem limites definidos e com a instauração de um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa alguma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto. Nas sociedades de controle, o essencial é uma cifra (código intransferível), que marca o acesso ou a recusa a uma informação. 
      Atrela-se então, o sujeito a este código, alienando-o em sua própria pseudo-identidade, onde o maior medo parece ser o não saber quem sou eu. Para sanar tamanho conflito surgem as mais variadas formas veladas de controle, dentre as quais, no capitalismo, destaca-se a mídia. Com a fragilidade, bem apontada por Deleuze, de instituições como a família, a escola e o Estado, cabe a alguém dizer o que pode ser feito para se “controlar” este sentimento tão terrível. E a solução torna-se o ter. Se antes, através do pensamento podia-se controlar o que sinto, agora, através do que consumo, posso controlar o que sinto. Este controle, no entanto, como já o era antes, nada mais é que uma alienação brutal à própria subjetividade, constituindo mentes cada vez mais frágeis e com cada vez mais medo, em crescente suscetibilidade a mensagens “persuasivas” e perversas de felicidade, liberdade e identidade, tão promovidas pela mídia, de um modo geral. O insucesso em não conseguir ter aquilo que o fará “ser” feliz, livre ou alguém se torna base sólida para o medo e para as mais varias formas de alívio da ansiedade advindas dele. 
     Dentre as estratégias mais comuns para se alienar a este medo encontramos os padrões de comportamentos compulsivos. O que não falta hoje em dia são termos para denotar estes padrões, shopaholic, workaholic, gymaholic, chocaholic, são apenas alguns dos vários rótulos que as pessoas por vezes usam até mesmo com orgulho ou de forma banal, ignorando a real extensão do problema. Dos padrões compulsivos, certamente o mais problemático é o que envolve o uso de drogas. No Brasil, 12,3% da população é dependente do álcool, 10,1% do tabaco e 3,3% de outras drogas (maconha, solventes, estimulantes e benzodiazepínicos). 
     Podemos observar no uso abusivo de drogas o padrão cíclico de medo gerando conflito, que por sua vez gera frustração, implicando em ansiedade, que terá como consequência estratégias de busca por controle, dentre as quais, podemos citar o as drogas, utilizadas, muitas vezes, como dispositivos de afastamento de fontes geradoras de ansiedade. Quando expostos os dados referentes à violência gerada, direta ou indiretamente, pelo uso de drogas (70% dos acidentes de trânsito violentos com morte envolveram o uso de álcool e o índice de mortes no Brasil envolvendo drogas apresentou crescimento de 58% nos últimos 14 anos, sem contar os altos índices de furtos e roubos praticados por indivíduos que vendem os objetos furtados/roubados para comprar drogas), voltamos aos eventos ambientais que auxiliam na geração de medo e o ciclo nunca rompe. 
     Busca-se tão freneticamente o controle do medo que parece passar despercebido o quanto nos deixamos controlar por este sentimento. Nessa sociedade de controle, de consumidores, as instituições beiram cada vez mais o colapso e ninguém quer assumir a responsabilidade por nada. Família, escola e Estado evitam qualquer movimento de autocrítica reflexiva e, menos ainda, de promoção de reflexões críticas nos futuros adultos tornando a si próprios e àqueles pelos quais deveriam zelar cada vez mais vulneráveis a serem controlados por acreditarem que podem controlar.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A criança e o consumo


Tratar da subjetividade humana é sempre um assunto bastante delicado. Desde a definição do conceito até a discussão sobre como é produzida tende a render muitos debates. Um ponto em que parece haver consenso, no entanto, é de que a subjetividade é produzida pela cultura em que um indivíduo está inserido e dita, de um modo ou de outro, a maneira como os indivíduos devem agir, pensar, perceber, sentir, se relacionar, etc., permeando todas as relações que surgem na sociedade.
Em uma sociedade capitalista o que interessa é o lucro e para tanto, deve-se vender, seja uma ideia, um serviço ou um produto. Torna-se necessário, portanto, convencer o consumidor de que ele precisa da ideia, do serviço ou do produto e para atingir este objetivo é preciso, invariavelmente, “atacar” ou controlar os dispositivos produtores de subjetividade, alienando – principalmente através da mídia – o sujeito cada vez mais a seu trabalho e àquilo que pode ter para se enquadrar em uma sociedade de consumidores. Ou seja, para o capitalista, a ideia que deve imperar é a do “consumo, logo existo”.
Nos últimos anos, entretanto, percebeu-se que direcionar a publicidade com sua linguagem sedutora e “persuasiva” para os adultos era pouco. Para se produzir subjetividades alienadoras e duradouras, formar crenças positivas em relação ao ato de consumir, e gerar futuros consumidores convictos e leais o ideal é direcionar esta publicidade para aqueles que estão mais vulneráveis: as crianças e os adolescentes.
O mundo social das crianças está cada vez mais sendo construído em torno do consumismo, onde marcas e produtos vieram para determinar quem está “por dentro” ou “por fora”, quem faz sucesso ou não, quem merece ter amigos ou status social). E é em cima desta ideia do “prazer da exclusão”, do ter – e ser “feliz” – ou não ter – e ser deixado para trás, que a indústria elabora suas campanhas de vendas.
As crianças determinam 75% das compras de cereais e 73% das de iogurte, assim como a escolha do destino nas férias (43% dos casos) ou as atividades nas horas de folga (72%). Por causa de estatísticas como estas, as empresas lançam suas mensagens diretamente às crianças ou as incitam a convencer seus pais a fazer certas compras. Para se ter idéia do volume de dinheiro envolvido nesse mercado, o valor gasto no Brasil em publicidade dirigida ao público infantil foi de aproximadamente R$210 milhões. Além disso, vale observar que a indústria voltada para produtos dirigidos a meninas, no mundo, movimenta anualmente US$15 bilhões. No Brasil, só a moda infanto-juvenil movimenta a soma anual de R$10 bilhões, o que corresponde a um terço de toda a roupa consumida no país.
As imagens publicitárias dirigem-se às crianças, o que é extremamente abusivo, pois até os 12 anos estas não têm capacidade crítica de entender o caráter persuasivo das mensagens. Até os quatro anos as crianças não conseguem diferenciar publicidade de programas. Conforme pesquisa norte-americana, bastam apenas 30 segundos para uma marca influenciá-las. Se pensarmos que a criança brasileira passa em média cinco horas por dia em frente à TV (Ibope, 2005), o grau de exposição a ideias consumistas é absurdo.
O funcionamento destas produções de subjetividade passa por uma série de conceitos delicados e complexos, mas que são muito bem dominados pela mídia publicitária. O emparelhamento de estímulos ligados à percepção e à atenção – através de mensagens persuasivas e altamente estimulantes – com respostas emocionais, que tem como consequência a criação de crenças positivas e desenvolvimento de lealdade a marcas ou produtos e a constante e crescente fragilização da função paterna em nossa sociedade (tornando o dizer “não” cada vez mais difícil), são variáveis de grande importância para a criação do “pano de fundo” favorável ao crescimento e manutenção de ideais consumistas.
Para Valkenburg e Cantor (2001) existem quatro etapas no comportamento de consumidor na infância. A primeira fase foi chamada de “Necessidades e Preferências dos Sentidos” e caracteriza os bebês e os que estão começando a caminhar. Durante esta fase, as crianças pequenas apresentam preferências distintas por cheiros, cores, sons e objetos, componentes importantes do comportamento de consumidor. A segunda fase, “Insistência e Negociação” abrange os anos pré-escolares, idade em que é difícil para as crianças distinguirem anúncios de programas, além disso, os pré-escolares são mais prováveis de serem atraídos por produtos chamativos visualmente e também querem imediatamente o que veem. A terceira fase, “Aventura e a Primeira Compra” ocorre entre os 5 e 8 anos. As crianças tipicamente fazem a sua primeira compra solo durante essa fase, tornando-se autênticas consumidoras independentes de um genitor. A última fase, “Adequação e Exigência” marca os anos tween, dos 8 aos 12. A capacidade de avaliar criticamente as informações, comparar produtos e perceber a intenção de venda dos anúncios se desenvolve durante essa época. Devido à sua atenção aos detalhes e às qualidades, muitas crianças se transformam em sérias colecionadoras de objetos durante este período. As habilidades de consumidor continuam a se desenvolver durante a adolescência, mas no final da escola elementar, todos os fundamentos do comportamento de consumidor já estão estabelecidos.
O desenvolvimento da criança envolve uma série de fatores que serão determinantes no como será o tratamento dado às necessidades de consumir na infância e na fase adulta. Winnicott, ao abordar a infância, tratou de falar sobre a identificação da mãe com seu filho e a identificação da criança com a mãe. A mãe suficientemente boa, para Winnicott, é aquela que dá suporte ao desenvolvimento do ego do bebê, propiciando a transição entre o funcionamento psíquico regido pelo prazer ao funcionamento regido pela realidade. Esta transição se dará a partir de três funções primárias: o holding (relacionado ao acolhimento e ponto de referência segura da criança), o handling (fundamentado nos cuidados através do manuseio que a mãe desprende ao bebê) e o object presenting, talvez a função mais importante na ligação com o consumo, que possibilita ao bebê uma apresentação progressiva ao mundo externo, estabelecendo uma relação com a realidade externa. Uma apresentação insuficiente pode bloquear o desenvolvimento de um sentimento de realidade na criança.
A publicidade direcionada para este público mais jovem, baseada essencialmente em peças visualmente estimulantes, pode agir diretamente nesta apresentação de objetos, caso a função materna não seja desenvolvida de maneira facilitadora. Isto poderá tornar o estabelecimento de relação com a realidade externa mais alienado e constantemente envolto nas subjetividades produzidas nesta etapa da vida. Além disso, para fazer esta transição, é normal que a criança busque um objeto transicional que irá facilitar e tornar possível a transição para a realidade. Ao agir nesta transição, a mídia pode estar criando objetos transicionais que nunca serão abandonados, criando as bases para a padrões compulsivos de consumo mais à frente na vida do indivíduo.
Outro ponto de grande relevância para a compreensão do consumismo na infância é a falha no estabelecimento daquilo que Spitz considera o terceiro organizador da psique – a comunicação humana, marcada, principalmente, pela compreensão progressiva das proibições. Para Spitz, o “não” é o primeiro conceito abstrato formado na mente da criança que representa para ela uma frustração emocional. A interrupção de uma atividade e o retorno forçado à passividade irão gerar desprazer na criança gerando resistência por parte desta, fundamento este que parece estar cada vez mais ausente na criação dos filhos hoje em dia.
Em Freud, encontramos na angústia da castração, momento em que a função paterna deve surgir e impor a Lei, qual o momento do desenvolvimento psicológico da criança em que se estabelecem as raízes para comportamentos histéricos ou desajustados, e também, para comportamentos compulsivos. As defesas que a criança terá que desenvolver para lidar com a angústia advinda da castração podem ter como consequência uma recusa em aceitar aquilo que lhes falta; em entender aquilo que aquele que lhe impõe a Lei (a função paterna) quer dela. Uma destas defesas podem ser elaboradas em torno de uma organização compulsiva, dando margem para a chamada oneomania, que é o ato de comprar compulsivamente, doença que atinge 1% da humanidade (3% da população no Brasil) e que já atinge a infância, segundo o neurologista Plínio Ferraz.
Frente a estas informações torna-se evidente que a relação entre criança e consumo é muito mais complexa do que se poderia imaginar. Entretanto, parece que a balança referente à compreensão deste fenômeno parece estar muito mais favorável àqueles que visam o consumo desenfreado do que àqueles que deveriam mediar a relação entre as crianças e as mídias existentes.
Em uma sociedade altamente individualista e hedonista, onde o ter é mais importante que o ser, parece que negar algo a uma criança implica em falhar enquanto pai ou, o que é pior, muitas vezes acaba sendo usado como moeda de compensação por não se julgar presente ou “bom” o suficiente, alimentando ainda mais o individualismo e o hedonismo. Cabe a estes pais se questionarem a respeito dos valores que estão passando adiante e refletirem criticamente sobre seus próprios comportamentos se desejam mudar este cenário de uma sociedade de consumidores controlada por medos e impulsos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cultura da Paz


Desde o início da humanidade um sentimento parece ter nos acompanhado e evoluído conosco: o medo. Talvez o mais primitivo de todos os sentimentos, o medo move montanhas. Foi por causa dele, em sua forma mais bruta, que o homem começou a andar em grupos, a buscar abrigo, formar clãs e compartilhar experiências, estabelecendo assim as bases para a formação do que hoje conhecemos como sociedade.
Ao longo do tempo, entretanto, este sentimento foi se tornando tão complexo quanto o desenvolvimento tecnológico promovido pela raça humana. O que antes era despertado pela pura necessidade de sobrevivência foi se tornando cada vez mais sofisticado, ganhando “aliados”, como fobias e angústias, e tornando os indivíduos cada vez mais reféns das sensações aversivas oriundas dele e de seus similares.
Hoje vivemos em uma sociedade de controle, na qual tentamos controlar tudo e todos constantemente a fim de amenizarmos os sentimentos advindos da promoção de tanto terror. Tememos sermos deixados para trás, sermos assaltados, sequestrados, assassinados, não termos o carro do ano, perdermos o emprego, etc., e, em função disto, ao invés de atingir o controle que se esperava, somos totalmente controlados por nossos medos e angústias.
Ser submisso ao medo traz consigo uma consequência imediata e que remonta aos nossos ancestrais paleolíticos – se não podemos controlar, devemos lutar contra. Estabelece-se então a base rudimentar para o raciocínio por detrás de toda e qualquer guerra, evento que marca de vermelho toda a história da humanidade.
O texto de Leonardo Boff, “Guerra e Paz” trata exatamente de como podemos ir na contramão deste que parece ser um fenômeno tão comum e banalizado atualmente. Primeiramente é necessário entender que as guerras de hoje em dia não se tratam mais de sobrevivência ou da luta por um espaço. Elas visam, como tudo no capitalismo, atender à demanda de grupos específicos que podem lucrar com isso, custe o que custar.
O chamado imperialismo, disfarçado em seus falsos ideais de liberdade, democracia e livre comércio, corrompe a tudo e a todos, a partir dos próprios indivíduos que aceitam e se submetem a este modelo de controle nefasto, nos fazendo acreditar que somos melhores que os outros e que um ser humano pode decidir se outro deve viver ou morrer em função de interesses específicos.
Desesperador como parece o cenário atual, Boff nos chama a atenção para o fato de que em meio a todo este caos são as pequenas ações que ao se somarem podem fazer a diferença. Para cada guerra, há um grupo pedindo paz, para cada conflito, há pelo menos uma pessoa visando resolvê-lo de maneira pacífica. Como bem coloca em seu texto: “se queres a paz, prepara a paz e não a guerra”.
Se, ao invés de ficarem se questionando se algo pode ser feito ou se é válido fazer algo quando tantos outros fazem o contrário, cada um fizer o gesto em prol da paz que considerar válido, pouco a pouco esta ideia pode se difundir, desconstruindo os valores engessados que se tem atualmente, gerando uma nova ética universal a favor da paz e do fazer o bem.
No entanto, isto só será possível se aceitarmos que temos dualidades, que não somos um ou outro, bem ou mal, justo ou injusto, certo ou errado, mas que somos os dois, o tempo todo, o que não nos impede de escolhermos o curso mais adequado para o todo, não apenas para nós enquanto indivíduos. Entendermos também, que podemos sentir medo, mas não devemos ser controlados por ele e sim, nos unirmos para lidar com ele. A grande dúvida que permanece é quanto sangue mais precisará ser derramado para que se entenda essa mensagem.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"Sociedade de indivíduos"


Não é difícil de perceber a fragilidade das relações em nossa sociedade em qualquer instituição. Seja família, religião, justiça, amor – tudo que era sólido se desmanchou – como bem previu Marx. Vivemos em uma “sociedade de indivíduos”, na era da modernidade líquida apontada por Bauman.
Em uma sociedade como esta, busca-se viver a “individualidade” de maneira intensa e constante. Valoriza-se muito a minha opinião, o meu modo de agir, a maneira como eu acho que outros devem agir ou pensar e, frequentemente, tal “individualidade” é exposta de maneira vaidosa, repleta de orgulho e arrogância, marcarando falsos moralismos e hipocrisias e glorificando o indivíduo em prol do coletivo.
Ora, para que esta ilusão mantenha-se viva, abre-se mão da liberdade, como o capitalismo a vende, para dar lugar a uma busca obssessiva por segurança, consequência de uma política do medo que vende como nenhuma outra. Procura-se proteger aquilo que me “afirma” enquanto indivíduo: minhas posses (sejam elas os relacionamentos que tão comumente tomamos como tais ou as materiais propriamente ditas). Vivemos cada vez mais enclausurados e cada vez com mais medo dos outros.
Qualquer que seja a sensação de individualidade que se tenha em um cenário como este, prova-se extremamente frágil e efêmera, frequentemente alienada em “valores” como o hedonismo, o imediatismo e o consumismo exarcebado como consequência destes ditos valores, que tornam-se os alicerces líquidos das relações na modernidade, seja com os outros, seja consigo mesmo.
Cabe questionar que individualidade é esta que depende do que tenho – e posso comparar e mostrar para o outro –, com quem estou e o que estou fazendo para velar o medo constante que sinto de ficar sozinho (solidão esta que decorre justamente desta falsa individualidade) e como o que tenho define o que sou, ao invés de minhas ações.
Uma sociedade como esta, na qual o ter vale mais que o ser – consumo ergo sum – é tal que os indivíduos prezam cada vez mais por falsos ideais de liberdade e felicidade, ignorando aquilo que nos define como seres humanos: o social, o qual, sem alteridade, tende cada vez mais à liquidez e à superficialidade. 

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Identidade e Alteridade; o reconhecimento do outro.


O princípio do qual temos que partir para entender a ideia de identidade é o da diferenciação, ou seja, nos questionarmos o que nos torna diferentes dos outros. É importante realçar, no entanto, de que esta identidade não é inata; ela se constrói socialmente, a partir de uma síntese pessoal que inclui atributos e modelos recebidos dos outros. Está intimamente ligada com o modo como afeto o outro e como sou afetado por ele.
Na mesma mão da identidade, caminha a alteridade que pode ser resumida, essencialmente,  no respeito e reconhecimento da identidade do outro. O que diferencia o outro de mim, de que maneira estas diferenças podem contribuir para a minha identidade; para minha consciência; para minha subjetividade.Uma sociedade que falha com a alteridade é uma sociedade doente, repleta de hipocrisias e preconceitos, e altamente individualista.
O som familiar dessa descrição não é mera coincidência. Vivemos em uma sociedade em que só o que interessa é o indivíduo, que tem como ideia deste, nada menos que a noção transmitida por dispositivos produtores de subjetividade massificadores e alienadores, como a mídia, a religião, etc. Ou seja, penso só em mim, mas acabo sendo um reflexo do que os outros querem que eu seja e, exijo também que os outros sejam o que quero. Não há espaço algum para a alteridade.
Tal falta de respeito e reconhecimento fica evidente quando uma figura política atual se pronuncia – com toda a arrogância que cabe a um típico estereótipo desta sociedade individualista, esta que bebe de ideais coletivistas – a respeito da “falta de educação” que é “pré-requisito” para se namorar uma negra, a respeito da necessidade de se bater em um filho com tendências homossexuais a fim de “educá-lo” entre tantas outras declarações ridículas. E pior, receber apoio de uma parcela influente e significativa da população brasileira, que alega um retorno aos “bons costumes e boas morais”.
O que deve ser resgatado, entretanto, não são costumes e morais e sim, a alteridade. Uma busca por uma visão de mundo que tenha em sua concepção de ser humano, pessoas, e não peças de máquina ou “clones”, além da importância das relações entre essas pessoas. Uma sociedade em que se possa ter e assumir sua identidade e abraçar a do outro como componente essencial de sua própria.

Total de visualizações de página