Desemprego, assassinatos, sequestros, roubos, furtos, morte, escuro, inferno, solidão, poucos contatos nas redes sociais, ter baixo desempenho, não agradar, não ser reconhecido, não ter. Não é de hoje, contudo, que o ser humano vive em função do medo. Medo de ser comido, medo de forças que não se podia – e talvez ainda não se possa – compreender (a natureza) e outros temores mais instintivos parecem ter sido cruciais para a sobrevivência de nossa espécie.
No entanto, o que era uma reação de afastamento a um objeto real temido foi ganhando, na boca do povo, um caráter cada vez mais “romântico” ao qual se atribui a responsabilidade por muitos comportamentos que, devido a sua reprodução em larga escala, foram produzindo o pano de fundo para que o caos em que vivemos hoje se estabelecesse. Para se tentar entender o que alguém faz e como se sente quando o faz não se deve atribuir significado ao sentimento como sendo o responsável por aquilo que se faz e sim, entender os eventos ambientais que fizeram o sujeito agir e como se sentiu ao agir.
Voltando à lista do que se tem medo, não parece difícil vislumbrar quais são os eventos ambientais que tem sido cruciais, não só na atualidade, mas ao longo da história humana, para gerar tanto medo. O que parece ser ignorado é que este sentimento, ao tentar ser dotado de significado ou de “culpa” por um comportamento irá, invariavelmente, gerar desconforto, pois sendo o produto colateral do ambiente, não poderá ser compreendido de outra forma. Com frequência se escutam frases como “só depois penso no que fiz, parece que sou movido pelos meus sentimentos”, reforçando ainda mais a falsa ideia de que sentimentos causam comportamentos. Quanto mais se tenta compreender o medo por esse viés, mais distante se ficará de qualquer resposta e instaura-se então, o conflito. Da frustração pela não resolução deste conflito, o que era medo ganha um adendo: a ansiedade. A ameaça deixa de ser real, como era no tempo de nossos ancestrais das cavernas, e evolui para algo totalmente abstrato, como o medo de ser punido por divindades, de ser deixado para trás, de não ter em uma sociedade onde se “tem que ter”.
Frente a ameaças que não podem ser vistas resta apenas uma solução: a generalização de comportamentos de esquiva e de fuga visando unicamente o controle daquilo a que se atribui a culpa do sentimento de frustração. Desde Descartes vivemos sob a máxima do “penso, logo existo”, da dualidade razão vs. emoção, que prega que através do pensamento é possível controlar as emoções, mas parece que a necessidade de controle é bem anterior ao século XVI. As religiões mais antigas parecem ter em um de seus pilares mais sólidos a necessidade de controle do medo, seja de forças da natureza, de doenças, do envelhecimento ou dos predadores. O próprio agrupamento em tribos, base para as civilizações modernas, visava o controle do medo.
Entretanto, como já foi dito, o que era crucial para nossa sobrevivência e para a evolução de nossa espécie foi perdendo cada vez mais este caráter até atingir o estado de não sabermos mais afirmar com clareza do que temos medo e, ainda assim, buscamos controlar qualquer indício deste sentimento com grande afinco. Deleuze, filósofo francês, ao comentar as sociedades disciplinares de Foucalt, (sociedades estas situadas entre os séculos VII e XX, atingindo o seu apogeu no início do século XX, em que a organização da sociedade se dava através dos grandes meios de confinamento – o indivíduo passava de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola, depois a fábrica, eventualmente o hospital e até mesmo a prisão) afirma que todos esses meios de confinamento entraram em crise. Atualmente, propõem-se reformas de todas essas instituições e o caos generaliza-se cada vez mais formando o que o filósofo chama de sociedades de controle. Nestas, os espaços são interpenetrados, sem limites definidos e com a instauração de um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa alguma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto. Nas sociedades de controle, o essencial é uma cifra (código intransferível), que marca o acesso ou a recusa a uma informação.
Atrela-se então, o sujeito a este código, alienando-o em sua própria pseudo-identidade, onde o maior medo parece ser o não saber quem sou eu. Para sanar tamanho conflito surgem as mais variadas formas veladas de controle, dentre as quais, no capitalismo, destaca-se a mídia. Com a fragilidade, bem apontada por Deleuze, de instituições como a família, a escola e o Estado, cabe a alguém dizer o que pode ser feito para se “controlar” este sentimento tão terrível. E a solução torna-se o ter. Se antes, através do pensamento podia-se controlar o que sinto, agora, através do que consumo, posso controlar o que sinto. Este controle, no entanto, como já o era antes, nada mais é que uma alienação brutal à própria subjetividade, constituindo mentes cada vez mais frágeis e com cada vez mais medo, em crescente suscetibilidade a mensagens “persuasivas” e perversas de felicidade, liberdade e identidade, tão promovidas pela mídia, de um modo geral. O insucesso em não conseguir ter aquilo que o fará “ser” feliz, livre ou alguém se torna base sólida para o medo e para as mais varias formas de alívio da ansiedade advindas dele.
Dentre as estratégias mais comuns para se alienar a este medo encontramos os padrões de comportamentos compulsivos. O que não falta hoje em dia são termos para denotar estes padrões, shopaholic, workaholic, gymaholic, chocaholic, são apenas alguns dos vários rótulos que as pessoas por vezes usam até mesmo com orgulho ou de forma banal, ignorando a real extensão do problema. Dos padrões compulsivos, certamente o mais problemático é o que envolve o uso de drogas. No Brasil, 12,3% da população é dependente do álcool, 10,1% do tabaco e 3,3% de outras drogas (maconha, solventes, estimulantes e benzodiazepínicos).
Podemos observar no uso abusivo de drogas o padrão cíclico de medo gerando conflito, que por sua vez gera frustração, implicando em ansiedade, que terá como consequência estratégias de busca por controle, dentre as quais, podemos citar o as drogas, utilizadas, muitas vezes, como dispositivos de afastamento de fontes geradoras de ansiedade. Quando expostos os dados referentes à violência gerada, direta ou indiretamente, pelo uso de drogas (70% dos acidentes de trânsito violentos com morte envolveram o uso de álcool e o índice de mortes no Brasil envolvendo drogas apresentou crescimento de 58% nos últimos 14 anos, sem contar os altos índices de furtos e roubos praticados por indivíduos que vendem os objetos furtados/roubados para comprar drogas), voltamos aos eventos ambientais que auxiliam na geração de medo e o ciclo nunca rompe.
Busca-se tão freneticamente o controle do medo que parece passar despercebido o quanto nos deixamos controlar por este sentimento. Nessa sociedade de controle, de consumidores, as instituições beiram cada vez mais o colapso e ninguém quer assumir a responsabilidade por nada. Família, escola e Estado evitam qualquer movimento de autocrítica reflexiva e, menos ainda, de promoção de reflexões críticas nos futuros adultos tornando a si próprios e àqueles pelos quais deveriam zelar cada vez mais vulneráveis a serem controlados por acreditarem que podem controlar.