quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O "demônio" está do lado de dentro

Quem acompanha o blog e acompanhou meu segundo ano na faculdade sabe que eu dediquei especial atenção no ano de 2012 ao fenômeno do alcoolismo e a fatores que influenciam na busca, manutenção e uso abusivo do álcool. Em um primeiro momento me debrucei sobre a influência da mídia no alcoolismo, em particular, na adolescência e, em seguida, sobre a influência dos valores alienantes produzidos pelo capitalismo na percepção que a sociedade, em particular, o jovem universitário, tem do álcool.
O motivo principal que me levou a me aprofundar neste tema foi, principalmente, uma série de questionamentos a respeito do que levava as pessoas a consumirem e abusarem de uma substância sabidamente prejudicial, frequentemente subestimando os efeitos negativos da mesma. No entanto, tão logo iniciei a pesquisa, rapidamente abandonei a arrogância de reduzir esse padrão comportamental ao uso e abuso do álcool e outras drogas. Um olhar um pouco mais atencioso permitiu observar com facilidade padrões auto-destrutivos e abusivos em várias instâncias da vida de um indivíduo, seja em relacionamentos (sejam com a família, com colegas ou namorados/as), com o trabalho (os famosos workaholics), com o lazer (o hedonismo), com a religião (extremistas e ortodoxos) e tantos outros mais.
Várias coisas começaram a me chamar a atenção no que concerne a semelhança de raciocínios construídos em torno destas relações destrutivas. A principal delas remete ao uso destas relações como mecanismos de escapismo da realidade, seja qual ela for para cada indivíduo. Parece haver um investimento intenso e cego em um "outro" - seja humano ou não - que sanaria magicamente todos os medos, inseguranças e dúvidas que sentimos. Colocado desta maneira, poucos questionariam a ineficácia de tal método, entretanto, menos ainda poderiam afirmar não se valer ou ter se valido de pelo menos um destes mecanismos ao longo da vida.
Como Freud, em sua obra "O Mal-estar na Civilização" (1930), bem colocou: 
"Mas diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade. É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. (...) Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe".
Outro ponto que parece ressonar nestas estratégias de defesa é a atribuição a um fator externo de toda a responsabilidade por aquilo que se faz e pelo "destino" das ações, por assim dizer. De modo direto ou indireto, este outro que deveria ser minha solução é também, o culpado caso a solução não venha ou não se sustente. Assim como na bebida, há o caso dos que dizem que o fazem porque aprenderam com a família, ou por culpa da publicidade, ou porque a bebida os ajuda a serem mais "sociais" e a se divertirem, nos relacionamentos há os que dizem que se submetem ao outro ou o submetem por conta de uma noção idealizada de gostar; no trabalho os que o executam de maneira patológica pois afirmam que precisam sustentar a família; no lazer aqueles que acreditam que a solução está nos prazeres da vida; e na religião a ilusão de uma figura paternal que tudo vê e que irá nos julgar quando morrermos, fazendo com que tenhamos que sempre agir corretamente.
No título de minhas duas pesquisas tive cuidado especial em utilizar a palavra influência justamente para ir na contramão do senso comum de buscar culpar fatores externos pelas próprias escolhas. É fato que não se pode negar a importância de fatores como a família e o meio na formação e manutenção de padrões comportamentais, e que, nos anos iniciais e na adolescência a psique do sujeito está sendo construída e estabelecida de modo que o mesmo não tem ainda capacidade de assumir plena responsabilidade por suas escolhas, embora as faça, não obstante.
Passadas estas etapas iniciais, no entanto, nas quais o sujeito já experimentou o prazer, a religião, os relacionamentos e,  muitas vezes, o trabalho e as drogas também, este indivíduo será, invariavelmente, impelido a uma crise. Os valores e regras que por tanto tempo foram reproduzidos a partir de um modelo aprendido começarão a não mais servir e as consequências de segui-los com tanto afinco amontoam-se fazendo com que se tenha que decidir entre dois caminhos: o da alienação, mergulhando em alguma ou mais de uma destas experiências ou o da reconstrução e flexibilização das regras.
As regras que levam à alienação frequentemente se estabelecem a partir da generalização de uma consequência desagradável em determinada experiência. Passamos então, a sermos totalmente controlados por nossas regras, buscando sempre um padrão utópico e idealizado de mundo onde estas consequências desagradáveis jamais voltem a ocorrer e , neste processo, desaprendemos a sentir e a ser. Tentamos tão insistentemente controlar nossos medos e inseguranças que acabamos nos enclausurando em tentativas de inibi-los  ou visando de maneira obcecada os completos opostos destes - ou que pelo menos entendermos ser os completos opostos -, a vida em busca do prazer e da "felicidade", esta sempre como aquilo que nos é ensinado que é felicidade - artificial, inócua e sinônima de prazer, não de virtudes.
Dada a crise, no entanto, não há mais a menor possibilidade de se querer culpar ou atribuir a um fator externo a responsabilidade pelas próprias escolhas e subsequentes consequências. Perceber e declarar a insatisfação com um padrão comportamental e nele insistir sem buscar mudança é alienação em sua forma mais brutal, pois anula o Eu e cristaliza-se uma máscara daquilo que o outro quer que eu seja e daquilo que eu quero que o outro veja. Assumir a responsabilidade pelos próprios atos e questionar as próprias regras jamais deve ser encarado de modo leviano, afinal estas regras que organizaram toda a etapa inicial da vida do sujeito e que justificam, a partir da seleção de interpretações que as legitimam, a leitura que se faz do mundo. Questioná-las envolve admitir de modo transparente e sincero as próprias falhas, fraquezas, medos e inseguranças e, acima de tudo, que somos seres humanos, fadados à imperfeição. Não é difícil entender porque tão frequentemente opta-se por se alienar e tampouco é provável que se consiga passar pela crise - que se espera, não ocorra apenas uma vez, mas frequentemente - inteiramente sozinho. Muito do que somos deve-se às nossas relações, descartá-las em momento tão importante é, também, uma alienação do Eu com consequências, não raramente, catastróficas.
Difícil como é esta tarefa de desconstrução do Eu (para passar a ser agora um verdadeiro Eu), cada conflituoso e desgastante passo para frente nesta jornada tende a ser extremamente recompensador. Um momento de lucidez basta para compensar uma vida de alienação. Lucidez esta que não se encontra em nenhuma resposta pronta, dogmática, estática. É justamente na ausência destas respostas, no reconhecimento das próprias limitações, na capacidade de sentir verdadeiramente sem que isto implique em definir os rumos das próprias ações é que um se torna lúcido, sensível ao mundo, não às regras engessadas que nos são impostas e que optamos por manter. A partir da aceitação da própria condição enquanto ser humano é que se torna possível aceitar o outro como humano e não como aquele que eu quero ver ou que quer se visto de determinada maneira.
Alguns poderiam argumentar que se os modelos que aprendemos é que nos alienam deveríamos então buscar mudar os modelos. Essa linha de raciocínio é extremamente perigosa, pois nos amarraria mais intensamente às regras, uma vez que buscaríamos ainda mais enquadrar as ações dos outros naquilo que acreditamos que deve ser feito, o que, em pouco tempo, se provaria impossível, como se prova diariamente para tantas pessoas. Não se pode controlar o comportamento dos outros, salvo em caso de coerção, método o qual a história tem exemplos de sobra para provar ineficaz. O que se deve buscar é a mudança do próprio comportamento, jamais visando a transformação desta mudança em modelo ou regra a ser seguido à risca. A mudança é um continuum, não um processo que deve se estagnar em algum momento. Uma crise deve despertar outra até que a própria natureza encerre o ciclo. 
Não se deve temer este processo, pelo contrário, deve-se sentir o medo, deixá-lo tomar conta de cada parte do ser, aprender o que puder com ele e então deixá-lo ir, pois somente assim ele não assumirá o controle, uma vez que, quanto mais se tenta controlar os sentimentos, mais eles o controlam em contrapartida, o que é especialmente verdadeiro para um sentimento tão poderoso como o medo. Não espere que a mudança venha de um fator externo, tampouco culpe tais fatores pela incapacidade de iniciar este processo interminável. Frente à crise, a escolha é sua e somente sua, bem como a responsabilidade pelas consequências do rumo tomado.

Total de visualizações de página