Quem acompanha o blog e
acompanhou meu segundo ano na faculdade sabe que eu dediquei especial atenção
no ano de 2012 ao fenômeno do alcoolismo e a fatores que influenciam na busca,
manutenção e uso abusivo do álcool. Em um primeiro momento me debrucei sobre a
influência da mídia no alcoolismo, em particular, na adolescência e,
em seguida, sobre a influência dos valores alienantes produzidos pelo
capitalismo na percepção que a sociedade, em particular, o jovem universitário,
tem do álcool.
O motivo principal que me levou a me
aprofundar neste tema foi, principalmente, uma série de questionamentos a
respeito do que levava as pessoas a consumirem e abusarem de uma substância
sabidamente prejudicial, frequentemente subestimando os efeitos negativos da
mesma. No entanto, tão logo iniciei a pesquisa, rapidamente abandonei a
arrogância de reduzir esse padrão comportamental ao uso e abuso do álcool e
outras drogas. Um olhar um pouco mais atencioso permitiu observar com
facilidade padrões auto-destrutivos e abusivos em várias instâncias da vida de
um indivíduo, seja em relacionamentos (sejam com a família, com colegas ou
namorados/as), com o trabalho (os famosos workaholics), com o lazer
(o hedonismo), com a religião (extremistas e ortodoxos) e tantos outros mais.
Várias coisas começaram a me chamar a
atenção no que concerne a semelhança de raciocínios construídos em torno destas
relações destrutivas. A principal delas remete ao uso destas relações como
mecanismos de escapismo da realidade, seja qual ela for para cada indivíduo.
Parece haver um investimento intenso e cego em um "outro" - seja
humano ou não - que sanaria magicamente todos os medos, inseguranças e dúvidas
que sentimos. Colocado desta maneira, poucos questionariam a ineficácia de tal
método, entretanto, menos ainda poderiam afirmar não se valer ou ter se valido
de pelo menos um destes mecanismos ao longo da vida.
Como Freud, em sua obra "O
Mal-estar na Civilização" (1930), bem colocou:
"Mas
diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico,
corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e
inscrevendo esse delírio na realidade. É de particular importância o caso em
que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a
felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da
realidade. (...) Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe".
Outro ponto que parece ressonar nestas
estratégias de defesa é a atribuição a um fator externo de toda a
responsabilidade por aquilo que se faz e pelo "destino" das ações,
por assim dizer. De modo direto ou indireto, este outro que deveria ser minha
solução é também, o culpado caso a solução não venha ou não se sustente. Assim
como na bebida, há o caso dos que dizem que o fazem porque aprenderam com a
família, ou por culpa da publicidade, ou porque a bebida os ajuda a serem mais
"sociais" e a se divertirem, nos relacionamentos há os que dizem que
se submetem ao outro ou o submetem por conta de uma noção idealizada de gostar;
no trabalho os que o executam de maneira patológica pois afirmam que precisam
sustentar a família; no lazer aqueles que acreditam que a solução está nos
prazeres da vida; e na religião a ilusão de uma figura paternal que tudo vê e
que irá nos julgar quando morrermos, fazendo com que tenhamos que sempre agir
corretamente.
No título de minhas duas pesquisas tive
cuidado especial em utilizar a palavra influência justamente
para ir na contramão do senso comum de buscar culpar fatores
externos pelas próprias escolhas. É fato que não se pode negar a importância de
fatores como a família e o meio na formação e manutenção de padrões
comportamentais, e que, nos anos iniciais e na adolescência a psique do sujeito
está sendo construída e estabelecida de modo que o mesmo não tem ainda
capacidade de assumir plena responsabilidade por suas escolhas, embora as faça,
não obstante.
Passadas estas etapas iniciais, no
entanto, nas quais o sujeito já experimentou o prazer, a religião, os relacionamentos
e, muitas vezes, o trabalho e as drogas também, este indivíduo será,
invariavelmente, impelido a uma crise. Os valores e regras que por tanto tempo
foram reproduzidos a partir de um modelo aprendido começarão a não mais servir
e as consequências de segui-los com tanto afinco amontoam-se fazendo com que se
tenha que decidir entre dois caminhos: o da alienação, mergulhando em alguma ou
mais de uma destas experiências ou o da reconstrução e flexibilização das
regras.
As regras que levam à alienação frequentemente
se estabelecem a partir da generalização de uma consequência desagradável em
determinada experiência. Passamos então, a sermos totalmente controlados por
nossas regras, buscando sempre um padrão utópico e idealizado de mundo onde
estas consequências desagradáveis jamais voltem a ocorrer e , neste processo,
desaprendemos a sentir e a ser. Tentamos tão
insistentemente controlar nossos medos e inseguranças que acabamos nos
enclausurando em tentativas de inibi-los ou visando de maneira obcecada os
completos opostos destes - ou que pelo menos entendermos ser os completos
opostos -, a vida em busca do prazer e da "felicidade", esta sempre
como aquilo que nos é ensinado que é felicidade - artificial, inócua e sinônima
de prazer, não de virtudes.
Dada a crise, no entanto, não há mais a
menor possibilidade de se querer culpar ou atribuir a um fator externo a
responsabilidade pelas próprias escolhas e subsequentes consequências. Perceber
e declarar a insatisfação com um padrão comportamental e nele insistir sem
buscar mudança é alienação em sua forma mais brutal, pois anula o Eu e
cristaliza-se uma máscara daquilo que o outro quer que eu seja e daquilo que eu
quero que o outro veja. Assumir a responsabilidade pelos próprios atos e
questionar as próprias regras jamais deve ser encarado de modo leviano, afinal
estas regras que organizaram toda a etapa inicial da vida do sujeito e que
justificam, a partir da seleção de interpretações que as legitimam, a leitura
que se faz do mundo. Questioná-las envolve admitir de modo transparente e
sincero as próprias falhas, fraquezas, medos e inseguranças e, acima de tudo,
que somos seres humanos, fadados à imperfeição. Não é difícil entender porque
tão frequentemente opta-se por se alienar e tampouco é provável que se consiga
passar pela crise - que se espera, não ocorra apenas uma vez, mas
frequentemente - inteiramente sozinho. Muito do que somos deve-se às nossas
relações, descartá-las em momento tão importante é, também, uma alienação do Eu
com consequências, não raramente, catastróficas.
Difícil como é esta tarefa de
desconstrução do Eu (para passar a ser agora um verdadeiro Eu), cada
conflituoso e desgastante passo para frente nesta jornada tende a ser
extremamente recompensador. Um momento de lucidez basta para compensar uma vida
de alienação. Lucidez esta que não se encontra em nenhuma resposta pronta,
dogmática, estática. É justamente na ausência destas respostas, no
reconhecimento das próprias limitações, na capacidade de sentir verdadeiramente
sem que isto implique em definir os rumos das próprias ações é que um se torna
lúcido, sensível ao mundo, não às regras engessadas que nos são impostas e que
optamos por manter. A partir da aceitação da própria condição enquanto ser
humano é que se torna possível aceitar o outro como humano e não como aquele
que eu quero ver ou que quer se visto de determinada maneira.
Alguns poderiam argumentar que se os
modelos que aprendemos é que nos alienam deveríamos então buscar mudar os
modelos. Essa linha de raciocínio é extremamente perigosa, pois nos amarraria
mais intensamente às regras, uma vez que buscaríamos ainda mais enquadrar as
ações dos outros naquilo que acreditamos que deve ser feito, o que, em pouco
tempo, se provaria impossível, como se prova diariamente para tantas pessoas.
Não se pode controlar o comportamento dos outros, salvo em caso de coerção,
método o qual a história tem exemplos de sobra para provar ineficaz. O que se
deve buscar é a mudança do próprio comportamento, jamais visando a
transformação desta mudança em modelo ou regra a ser seguido à risca. A mudança
é um continuum, não um processo que deve se estagnar em algum momento. Uma
crise deve despertar outra até que a própria natureza encerre o ciclo.
Não se deve temer este processo, pelo
contrário, deve-se sentir o medo, deixá-lo tomar conta de cada parte do ser,
aprender o que puder com ele e então deixá-lo ir, pois somente assim ele não
assumirá o controle, uma vez que, quanto mais se tenta controlar os
sentimentos, mais eles o controlam em contrapartida, o que é especialmente
verdadeiro para um sentimento tão poderoso como o medo. Não espere que a
mudança venha de um fator externo, tampouco culpe tais fatores pela
incapacidade de iniciar este processo interminável. Frente à crise, a escolha é
sua e somente sua, bem como a responsabilidade pelas consequências do rumo
tomado.
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