terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015 e votos para 2016

2015: O abominável ano interminável. Ou pelo menos essa parece ser a impressão deixada em muitos - eu incluso - por um ano marcado por retrocessos, exposição intensa de discursos de ódio (que, para já tirar a "polêmica" do caminho, é muito diferente de emitir opinião) e dados alarmantes referentes à toda sorte de violência contra mulheres, negrxs, lgbts, imigrantes e outras populações historicamente violadas em seus direitos mais básicos.
Há de se ressaltar, no entanto, que foi também um ano com dois brilhantes exemplos de luta e resistência - a dos professores aqui no Paraná e em São Paulo, no primeiro semestre, e a dos estudantes secundaristas em São Paulo, no segundo semestre. Além disso, a formação da Frente Povo Sem Medo e o fortalecimento do Espaço Unidade de Ação mostraram que a esquerda brasileira não está dormente como se afirma por aí. Por fim, a resistência incansável dos representantes do PSOL no Congresso Nacional, bem como de nossxs militantes, às barbáries de Eduardo Cunha e sua tropa é injeção fundamental de ânimo para o ano que se segue, este que traz como única certeza a de que a luta será ainda mais intensa.
Estando mais ativo e próximo da militância como estive em 2015 - uma de minhas vitórias pessoais e que pretendo manter em 2016 - fui levado a questionar inúmeras concepções, a rever pontos de vista e a aprender muita coisa nova. No entanto, acredito que a reflexão mais importante que venho fazendo ao longo deste período recente diz respeito à maneira como me comunico. 
A observância de exposições e argumentações diversificadas aliada ao meu próprio processo psicoterapêutico me fizeram levantar questão sobre muitos de meus vícios de comunicação, assim como me deixou mais atento a padrões adotados por aquelxs com quem tenho algum contato ou pelas mídias as quais tive acesso.
Lembro-me bem de uma das primeiras lições que tive já no começo deste ano por intermédio indireto de colegas militantes. Com frequência compartilhava textos ou escrevia posts no Facebook em que eu fazia alusão a algum fato historicamente incorreto dizendo aos que acreditavam naquilo que fossem ler um livro de História.
Um texto de um colega, não relacionado com os meus posts, fazia crítica a este tipo de discurso e me pôs, imediatamente, a refletir acerca da arrogância e do academicismo que permeavam essas e tantas outras publicações minhas na rede social e fora dela, igualmente. 
Obviamente, não quer dizer que isto cessou completamente, mas foi um importante primeiro passo na direção de me fazer ficar muito mais atento à maneira como expunha minhas opiniões - não só nas redes sociais, mas pessoalmente, também - embora não fosse a primeira vez que tivesse sido convidado a refletir sobre esse padrão arrogante de comunicação.
Uma tarefa de grande valor que assumi este ano foi a de diretor de comunicação do Centro Acadêmico de Psicologia da Tuiuti. Lembro de ter achado irônico eu estar assumindo uma posição como esta, uma vez que uma de minhas principais queixas na terapia é a minha dificuldade em me comunicar com as pessoas. 
Em uma ocasião em especial, a organização de uma Jornada Acadêmica de Psicologia, as minhas habilidades de comunicação foram colocadas à prova e o saldo foi, no mínimo, confuso. 
Desta experiência tirei outro importante aprendizado - o de que, por mais que tenhamos certeza de que estamos falando algo da maneira mais clara e polida possível, nem sempre é assim que será recebido pelo outro. Por mais absurdos que possam parecer no momento, é sempre fundamental que estejamos dispostos a ouvir feedbacks dissonantes daquilo que acreditamos estar fazendo e a parar para refletir se, de fato, nossa comunicação está sendo transmitida como achamos que está.
As hashtags #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto também contribuíram para longas reflexões, não por conta do conteúdo de cada uma delas - a indiscutível violência contra as mulheres - mas por conta de uma diferença fundamental na exposição feita em cada uma delas. 
Vale destacar que o foco aqui é muito mais em algo meu e de outros que percebi através deste contraste, do que uma crítica direta ao que essas manifestações pretenderam. 
No primeiro caso, pude perceber como é difícil, porém catártico conseguir falar de algo que nos faz muito mal. Não raramente somos apresentados a um modelo dicotômico de como lidar com nosso desconforto: "não engolir o sapo" x "engolir o choro". Os dois, obviamente, são bastante prejudiciais e foram, de maneira muito adequada, contrapostos pelo que aconteceu nos relatos do #meuprimeiroassedio. 
A descrição clara de uma situação aversiva e das consequências geradas pelo ato em si própria/o é um desafio constante no setting terapêutico e reflexo de um problema grave em nossa sociedade - o de como não somos ensinados a falar de nossos sentimentos e daquilo que nos faz mal, ou até mesmo daquilo que nos faz bem. Este é, de longe, um de meus principais desafios na terapia e, acredito, que de tantos outros clientes, também.
O modelo fornecido por essas mulheres é de grande importância tanto para que outras mulheres consigam fazer o mesmo, como para que pensemos no como tratamos nossos próprios desconfortos - se somos capazes de falar deles para nós mesmos e nos permitir perceber os efeitos daquilo em nós sem necessariamente buscar um culpado (nós mesmos ou quem tenha causado aquilo), mas visando nos conhecer melhor e nos "libertar" daquilo que nos corrói.
A segunda hashtag, no entanto, devo admitir, me causou desconforto. Não por saber que já fiz ou faço muitas das coisas relatadas, como levantar a voz e interromper uma colega que está falando, por exemplo. Este desconforto é evidente e necessário. 
É o modelo oferecido pelos relatos que me causa algum incômodo - e mais por me perceber fazendo algo parecido em outras situações que em nada se assemelham ao que foi colocado nos relatos do que por achar inadequada a tag. 
Em um primeiro momento fui seduzido pelo pensamento de que esses relatos deviam ser direcionados aos que estavam sendo contemplados por eles - por acreditar que isso poderia promover alguma mudança mais eficaz do que um relato público.
Logicamente, a tarefa é muito mais complexa do que parece. Quantos homens, ao ouvirem qualquer feedback deste tipo não reagiram violentamente contra suas companheiras ou colegas, acarretando até mesmo em morte. Quantas mulheres não foram ensinadas a não "retrucarem" justamente para evitar este tipo de represália.
Desta forma, é evidente que os relatos contidos no #meuamigosecreto tem função importante para instrumentalizar e oferecer espaço a muitas mulheres que não tinham antes dessa oportunidade. Além disso, para os homens que se dispuseram a ler tais relatos, ficou muito difícil não parar pra pensar na frequência com a qual fazemos muitas das coisas que ali foram descritas.
O que me gera desconforto neste modelo de relato, ao vê-lo reproduzido em outras situações cotidianas, é a aposta no constrangimento para provocar reflexão ou mudanças, o que me remete ao exemplo inicial que dei. Além disso, há o desconforto de perceber como eu também já reagi de maneira verbalmente abusiva a colocações que me desagradaram, ao me sentir constrangido.
É fundamental ressaltar que o sentimento de constrangimento não justifica a reação abusiva. Quem me conhece sabe bem de uma máxima do Behaviorismo Radical que repito com frequência: "sentimento não causa comportamento". O que ocorre, grosso modo, é que o sentimento de constrangimento - por ser desagradável - torna mais provável que nos comportemos de modo a afastar o sentimento ou a atacar aquilo que acreditamos gerar o desconforto. 
Desta forma, se reagimos abusivamente, não é por estarmos nos sentindo constrangido, mas sim porque queremos atacar quem nos constrange. Esta noção é importante, pois contradiz o discurso do "fiz porque fulano/a me irritou", mudando o foco para "fiz porque queria causar no outro o que ele causou em mim" - no caso específico de reagirmos abusivamente (nem todos vão reagir assim a uma situação como essa).
Há de se levar em consideração, entretanto, que determinados padrões de fala tem também uma probabilidade aumentada de gerar este tipo de reação. Isto não implica em algo deixar de ser dito, mas apenas em se repensar como se diz algo. Ignorar que algo que dizemos pode desagradar o outro em prol do como consideramos importante dizer o que queremos dizer é uma prática perigosa e pode se revelar tão aversiva como aquilo que pretendemos denunciar.
Tal fato é particularmente importante nas minhas vivências. O desafio em dizer algo que julgamos necessário de uma maneira que seja empática e assertiva é colossal, comparável apenas ao desafio de reagir a algo que nos foi dito e nos desagradou de maneira igualmente empática e assertiva.
O que eu tento evidenciar nesses exemplos é a tarefa hercúlea que é se comunicar. Certamente, o principal inimigo nesta empreitada são nossas certezas, nossas regras. As convicções que temos acerca do que comunicamos e as certezas que temos acerca do que nossos ouvintes entendem são os principais entraves para que uma comunicação possa ocorrer de maneira empática e assertiva.
Ser empático não é se colocar no lugar do outro tentando imaginar como nos sentiríamos ou como reagiríamos. Ser empático é estar sensível ao que o outro nos diz ou não diz (e não a o que achamos que ele vai dizer ou não dizer) e estar sensível também ao como nos sentimos em relação a isso para que, aí sim, consigamos nos comunicar assertivamente. 
A comunicação assertiva implica em saber estar sensível ao(s) outro(s), a si mesmo e ao momento e saber falar algo que queremos de maneira clara, objetiva e não "terceirizada" (focando apenas no outro), assim como também saber quando não falar. 
Existe uma lógica coercitiva extremamente difícil de se superar em como nos comunicamos. Esta lógica não é da direita ou da esquerda, minha ou sua. É de todos nós. 
Com absurda frequência ficamos apenas sensíveis ao como estamos nos sentindo para nos comunicar e obcecados pelas possíveis consequências que vislumbramos de falar algo de determinada maneira em determinado momento.
Sempre que escuto a máxima "o que falta é educação" eu sou levado a pensar, a partir da minha própria história de vida e de tantos outros, de que a educação que falta, a que fomos ensinados - geração após geração - a ignorar (ou talvez nunca tenhamos aprendido, de fato) é a educação em habilidades sociais, especialmente, no que diz respeito a como nos comunicamos. 
Estamos mais dispostos a continuar reproduzindo padrões punitivos do que a repensar modelos de comunicação que estamos ensinando e reforçando. 
Não se pode esperar padrões diferentes de comunicação - padrões não-coercitivos - se os modelos que reproduzimos no nosso dia a dia são coercitivos. 
Mais importante ainda é entender que a coerção não está na nossa intenção em coagir e sim, no efeito coercitivo que o outro diz ter sentido. Não raramente afirmamos que não tivemos a intenção ou que a pessoa está "na defensiva" ou tantas outras tentativas de anular o relato do outro, não por sermos perversos, mas por também não termos sido ensinados a fazer diferente.
O desafio que se apresenta ao nos darmos conta disto é não esperar que as pessoas "caiam na real" ou cair nas armadilhas do "mas como assim ele/a não percebe isso?", "como ele/a não se tocou que eu queria aquilo ou que eu quis dizer tal coisa?". Não podemos esperar de ninguém aquilo que não lhes pedimos. Também não podemos confundir despertar de consciência com constrangimento. Descrever a ação de alguém e as consequências de tal ação é possível de maneira empática e assertiva. 
Para que possamos fazer isso sem temer reações abusivas é essencial que o objetivo daquilo que reproduzimos seja cada vez maior o ensino de modelos de comunicação que tenham como foco a validação e acolhimento de ambas as partes.
O comportamento verbal (falado ou escrito), assim como qualquer outro comportamento, produz consequências as quais não podemos controlar totalmente, o que não nos torna menos responsáveis por elas, uma vez que também somos afetados por essas consequências. Se desejamos uma sociedade mais igualitária e relações de qualidade, temos que começar pela comunicação.
A minha meta pessoal e os meus votos para 2016 são de uma sociedade que saiba se comunicar melhor - empática e assertivamente.
Um próspero 2016 a todxs!

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Por que lutar contra o capitalismo?

Recentemente compartilhei um post (http://migre.me/rC39H) sobre uma matéria no Fantástico que (além da agressão as pessoas trans em outro quadro), resolveu fazer um quadro no melhor estilo “Dia da Princesa” na sua revista semanal. O post trazia, em linhas muito gerais (muito mesmo), a ideia da mais-valia, um dos conceitos centrais da economia política marxista, pois relatava que, no quadro em questão, um chefe executivo tinha passado uma semana fazendo trabalhos braçais e convivendo mais diretamente com a realidade desses trabalhadores e ao final do período afirmou “Eu nunca trabalhei tanto na minha vida”. A frase, no contexto em que foi proferida, é símbolo do sistema econômico em que vivemos.
Uma das reações a esse post foi outro, em resposta, colocando que o chefe deu conta dos serviços e questionando quantos funcionários dariam conta do trabalho com alguns minutos de explicação. Até aí seria uma questão simples de esclarecer o mal entendido. A crítica era relacionada ao conceito da mais-valia (vou explicar abaixo o que é), pelo fato de muitos patrões por aí receberem muito e acharem justos os salários de seus empregados que trabalham - fisica e mentalmente - intensamente e não à qualidade do trabalho desempenhado. Uma breve resposta nos comentários serviria para esclarecer isso e a vida continua.
No entanto, uma provocação (no sentido reflexivo, não no ofensivo) me fez acreditar que seria interessante escrever algo sobre isso, pois me parece que pode ser um engano comum para muitas pessoas: a ideia de que a crítica à exploração e a opressão (nesse caso mais específico, na esfera do trabalho) é queda de braço política entre esquerda e direita. Além disso, de que nós, da esquerda, estamos querendo colocar todos os patrões em postes e linchá-los (uma dica, não somos nós que costumamos fazer isso). Vale lembrar que nossa “briga” é com o patrão explorador e opressor. Aquele que tem de seus funcionários o feedback de que suas condições de trabalho e emprego são dignas e justas não deveria se preocupar com nossa crítica, deveria se preocupar em lutar para que outros ambientes fossem assim também.
Falando sobre a mais-valia, um dos pilares do capitalismo é a apropriação do meio de produção. É, dessa forma, retirado do trabalhador aquilo que garantiria seu sustento para que, ao invés de produzir sua subsistência, o trabalhador tenha que vender sua força de trabalho para alguém que tem aquilo que ele precisa para sobreviver.
O trabalhador, portanto, deveria ter que trabalhar apenas o suficiente para lhe garantir sua subsistência e de sua família, mas isso não garantiria o lucro necessário às empresas e, sendo assim, esses trabalhadores, além de produzir seu sustento (mal e porcamente, na grande maioria das vezes), precisam gerar excedente de trabalho para que a empresa possa lucrar. A esse excedente de trabalho dá-se o nome de mais-valia.
Em outras palavras, grosso modo, o trabalhador produz mais do que aquilo que seria necessário para sua sobrevivência (se precisa produzir x carros para pagar suas contas e ter alguma qualidade de vida com sua família, produz x + y para garantir sua subsistência e gerar (mais) lucro para empresa - que já o teria com os carros produzidos inicialmente). Essa exploração se dá estendendo as horas de trabalho sem aumentar o salário (as jornadas ilegalmente extensas, como é o caso do trabalho escravo; horas extras não remuneradas, etc) ou, inserindo tecnologia para que o trabalhador produza mais em menos tempo, essa inserção sendo frequentemente acompanhada por controles rigorosos, como é o caso do registro em cronômetro do tempo que um operador de telemarketing fica no banheiro, por exemplo.
É comum ouvir coisas como “a vida que temos hoje só é possível por causa do capitalismo”. Que vida é essa? A dos ricos e a minha, de classe média? E a dos 6% de brasileiros que vivem em extrema pobreza e os 18% em situação de pobreza?[1] E os 920 milhões de pessoas no mundo que vivem abaixo do limiar de 1,25 dólar por dia?[2] Só a fome matava uma criança a cada seis segundos no mundo em 2010.[3]
O capitalismo permitiu que tivéssemos esses avanços tecnológicos e melhorássemos nossa qualidade de vida, alguns afirmam. Ainda assim, só no Brasil as mortes por depressão cresceram 705% em 2014.[4] No mundo, a cada 40 segundos alguém comete suicídio e o Brasil é o 8º lugar nessa lista.[5] Estou citando, propositadamente esses dois dados, porque em um sistema tão benéfico e benevolente as pessoas deveriam estar muito felizes.
Dois casos recentes na mídia ilustram muito bem a opressão e exploração do capital e a lógica perversa que embasa as decisões desse sistema. A primeira refere-se ao aumento de 5000% no valor de um medicamento para toxosplamase nos EUA após uma empresa farmacêutica comprar sua patente.[6] Outros pilares centrais da lógica do capital, além da já citada apropriação do meio de produção, são os fetiches do Estado mínimo e da “lei da oferta e procura”, brutalmente exemplificados nessa notícia.
“Isso é ser imoral, não tem nada a ver com capitalismo!” Que é imoral, não há dúvidas, no entanto, sem regulação do Estado, uma empresa pode subir o preço de seu produto baseada na desculpa da demanda, da oferta e procura, das dificuldades financeiras ou qualquer outro argumento que sirva para disfarçar a obsessão pelo lucro. Isso fica bem claro na notícia acima quando o presidente da farmacêutica em questão afirma que “medicamentos muito bem-sucedidos, como o Viagra, geram bastante dinheiro, mas droga para doenças raras são menos atraentes, porque menos pessoas as usam e torna-las lucrativas é mais difícil”. Para quem tenta buscar algum conforto pensando que isso é um caso isolado, sugiro ir na farmácia comprar um remédio que não esteja disponível na lista do SUS para perceber que a lógica do sujeito é a lógica da indústria farmacêutica, que é a lógica do capital.
O outro caso recente na mídia é o dos juros de 403,5% ao ano do cartão de crédito brasileiro[7], que reflete outra realidade do sistema capitalista: os oligopólios e, novamente, a falta de regulação sobre as taxas cobradas. No oligopólio, poucas empresas oferecem um serviço, o que diminui a concorrência e aumenta os “acordos de cavalheiros” entre os figurões para garantir seus lucros repassando o prejuízo ao consumidor. A desculpa dos bancos para esses juros exorbitantes é de que a inadimplência é alta, o que afeta o spread bancário. O spread bancário é a diferença entre os juros que a instituição financeira cobra dos clientes e que o paga para captar o dinheiro[8].
A inadimplência brasileira, era de 3,1%, em contraste aos 7,8% na Itália, por exemplo, em 2014, que cobra juros mais baixos que os nossos[9]. Se a inadimplência não é tão elevada como dizem, o que justifica os juros? O que eles não contam é que no cálculo do spread entram também os lucros dos bancos. E esses lucros, desde 2010, representam 1/3 do spread.[10] Os juros não são os únicos responsáveis pelos lucros dos bancos, mas não é curioso que os bancos brasileiros, em pleno desespero econômico dos trabalhadores e desempregados de classe média e baixa, tenham atingido lucros exorbitantes no primeiro semestre de 2015?[11],[12]
“Ah, mas isso é coisa do capitalismo selvagem, só essas grandes empresas são assim!” O Brasil tem uma das maiores diferenças salariais entre a base e o topo. No Brasil, um profissional com um cargo de liderança, como gerência ou diretoria de departamento, recebe quase 14 vezes o salário de um funcionário de nível operacional, como operadores de máquinas. Isso faz do Brasil o décimo país com a maior diferença entre um nível e outro. Um profissional de alto escalão no Brasil recebe 67% do que ganha um profissional do mesmo nível na Suíça. Já um funcionário de nível operacional brasileiro ganha apenas 14% do que o recebido por alguém no mesmo cargo no país europeu.[13]
“A esquerda, os comunistas, querem que as pessoas ganhem dinheiro sem trabalhar. Vamos ficar sustentando vagabundos. No capitalismo as pessoas tem que trabalhar para conseguir seu dinheiro e só aqueles que se esforçam conseguem”. De todos os devaneios capitalistas, a meritocracia é, de longe, a mais desconectada da realidade e uma das leituras mais perversas de mundo que se pode fazer. Pra começo de conversa, os 0,9% mais ricos do País (zero vírgula nove, isso mesmo) detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza[14], sendo as principais fontes de acumulação de riqueza os fluxos de renda e heranças. Realmente, deve exigir um trabalho descomunal receber uma herança (eu sei que alguém teve que trabalhar - ou fazer os acordos certos - para ter esse dinheiro, mas se quem o tem agora, o tem sem fazer nada, onde fica a meritocracia?).
Obviamente, existirão as exceções – e é crucial que fique claro que são isso, exceções – de pessoas que suaram sua camisa, deram duro, passaram por todo tipo de perrengue para conseguir ter sua fortuna. Mas será que essas que conseguiram, o fizeram por se esforçar mais do que a dona Maria ou seu João que acordam as 4:30 da manhã pra dar de comer pros filhos antes desses irem pra escola, pegam 2, 3 ônibus para ir para suas jornadas duplas e triplas e receber uma miséria? Ou ainda, ter seu salário reduzido por ser mulher, negr@ ou lgbt? Ou conseguiram porque tiveram seu acesso garantido a escolas, não tinham que se preocupar todo dia se teriam o que comer o dia seguinte ou se conseguiriam garantir o lanche do filho na escola? É justo pegar casos individuais para defender um sistema que produz esse tipo de desigualdade?
Eu era mais merecedor que tantos outros trabalhadores de trabalhar em um banco seis horas diárias em ambiente climatizado e com condições ergonômicas minimamente adequadas recebendo uma bolsa-auxílio (o “salário” do estagiário) que chegava a ser duas vezes mais o que muitos trabalhadores do terceiro setor recebem para trabalhar, no mínimo, oito horas? Facilmente eu poderia acreditar que eu tinha conseguido aquilo porque me esforcei mais, porque eu merecia. E ignorar o fato de que sou homem, hetero, branco, nascido em uma família com condições financeiras estáveis o suficiente para garantir que minha única preocupação fosse estudar para uma prova.
Ainda falando de “esforço”. Só entre os professores da educação básica, 40% fazem jornada dupla ou tripla (trabalhando até 12 horas por dia).[15] A jornada de trabalho de uma mulher que tenha filh@ chega a 13 horas diária, dividida entre os afazeres domesticos, cuidar d@(s) filh@(s), deslocamento para o trabalho assalariado e desempenho da função nesse local. Ah, e detalhe, as mulheres latino-americanas ganham menos, mesmo que possuam um maior nível de instrução.[16]
Por meio de comparação simples dos salários médios, foi constatado que os homens ganham 10% a mais que as mulheres. Já quando a comparação envolve homens e mulheres com a mesma idade e nível de instrução, essa diferença sobe para 17%. Só no Brasil os níveis de disparidade salarial estão entre os maiores da América Latina. No país, os homens ganham aproximadamente 30% a mais que as mulheres de mesma idade e nível de instrução. Citando outros grupos, a população indígena e negra ganha em média 28% menos que a população branca de mesma idade e nível de instrução.[17]
O capitalismo propicia muitas coisas, de fato. Uma delas é a manutenção do trabalho escravo mesmo quando a escravidão já foi abolida. O Brasil tem mais de 150 mil pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão.[18] A cada dia, mais de 5 pessoas são libertadas, em média, no país, de condições degradantes de trabalho.[19] A maioria é composta por imigrantes ilegais ou migrantes do Norte do país, negr@s ou pard@s e pobres.[20]
Em 2015, 420 pessoas físicas e pessoas jurídicas constaram na lista de empregadores com trabalho escravo.[21] De 2010 a 2015, esse tipo de violência foi flagrada em uma infinidade de coronéis do agronegócio (latifundiários, atualmente quase todos herdeiros) na construtora MRV, M. Officer, Luigi Bertolli, C&A, Zara, Pernambucanas, no IBGE, Marisa, etc.[22] Num caso recente, fiscais do Ministério do Trabalho flagraram 263 adolescentes em trabalho irregular em 14 estabelecimentos, em Porto Alegre, da Arcos Dourados, dona da franquia da rede McDonald’s.[23] Isso só pra citar casos brasileiros.
Quer dizer, então, que devemos rasgar nossas roupas e jogar nossos celulares no lixo? Que não devemos consumir nada e viver fazendo voto de pobreza? (Ainda tô esperando alguém me mandar o texto comunista que fala que os comunistas devem viver na pobreza). O que já foi comprado já alimentou a cadeia. Agora, sabendo disso, continuar consumindo e dando lucro pros exploradores e escravizadores é mais que alienação, é perversão. Demonstrar repúdio a empresas que se utilizam dessa prática e boicotá-las é uma obrigação moral e cívica.
Exigir que – para que você possa consumir o que você deseja (não vou nem entrar na questão do consumismo no capitalismo) – este produto tenha sido feito, em todas suas etapas, por pessoas em condições dignas de vida e conscientes de seus direitos é o mínimo que poderia se esperar de SER humano. Enquanto o que prevalecer forem as lógicas do consumismo, individualismo, “liberdade”, meritocracia e o lucro acima de qualquer coisa sempre haverá cada vez mais espaço para a opressão, exploração, desigualdade e violência.
Portanto, não se trata de queda de braço entre esquerda e direita ou esse Fla x Flu que vemos na política. A esquerda de fato (não esse absurdo midiático e reacionário de colocar o PT como esquerda) não luta pela política institucional. Esse é apenas um dos vários meios encontrados para que possamos confrontar o capitalismo e o conservadorismo. Nossa luta é contra o extermínio humano e a favor da liberdade enquanto sociedade (não essa liberdade individualista do capitalismo) e da igualdade de direitos e não de pessoas iguais (como se vê cada vez mais no conservadorismo neoliberal). Isto posto, não me resta dúvidas: a saída para a crise mundial das relações humanas é à esquerda e contra o capitalismo.


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