Há quem diga que a violência
caiu drasticamente se comparada com períodos anteriores da história da
humanidade. Há quem afirme que violência é algo restrito a animais selvagens.
Há quem defenda também que o ser humano está mais pacífico e mais civilizado. Essas
ideias ingênuas, no entanto, são, no mínimo, discutíveis.
Guerras intermináveis, crimes
terroristas, chacinas, banalização de assaltos, estupros, assassinatos são
alguns exemplos de como a violência física está muito viva em nosso dia a dia
sendo, não só veiculada, como perpetuada pela mídia que em muito se alimenta
desta nossa cultura do medo e do terror para atingir seu público.
Não bastassem as formas físicas
de violência temos também as psicológicas que aumentam vertiginosamente.
Bullying (e cybergullying), abuso psicológico, preconceito, segregação
socioeconômica, invisibilidade social e a indiferença se fazem cada vez mais
presentes em nossas vidas com origens históricas longínquas, cujas raízes estão
longe de se deteriorarem.
O que certamente aumentou ao
longo do tempo foram maneiras e estratégias de tentar coibir a violência. O
problema reside no fato de que a massiva maioria envolve punições ou mecanismos
de controle e repressão, que são, por si só, formas de violência contra o ser
humano.
Skinner (1979) já havia chamado atenção
para o fato de que a punição não reduz permanentemente o comportamento que está
sendo punido. Ela é “eficaz”, apenas no momento em que se faz presente. Tão
logo cesse, o comportamento indesejável tende a retornar.
Em casos onde a punição
persiste, como é o caso do sistema carcerário que, embora provado ineficaz,
perdura por milênios, a tendência é que tais formas de controle gerem o que foi
chamado por Sidman (1995) de contra-controle, que, a grosso modo, é a tendência
dos sujeitos controlados a “revidarem”. Isto pode ocorrer das mais variadas
formas, desde o revidar propriamente dito (rebeliões, punir o punidor,
tornar-se hostil, tornar-se um agressor, etc), até começar a comportar-se de
maneira indiferente à violência, banalizando a mesma.
A redução da violência,
portanto, é altamente discutível. O que parece ter acontecido é que a violência
foi se moldando às formas de controle e punição existentes adquirindo facetas
mais sutis e se beneficiando da banalização e vista grossa cada vez mais
frequentes em nossa sociedade. É de uma destas formas de violência, a contra
mulheres nos serviços básicos de saúde, que o artigo de Guedes, Fonseca e Egry
(2013) trata.
As autoras constataram que as
mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, que representam cerca de 35%
das queixas que levam mulheres a buscar serviços de saúde, não recebem o
atendimento necessário e com a qualidade devida. Dentre os motivos para esta
invisibilidade de violência apontados no artigo estão o sentimento de
impotência para lidar com o assunto, a desinformação e a falta de capacitação
profissional específica.
Em estudo realizado pelas
autoras com 13 mulheres usuárias do serviço de saúde em uma Unidade Básica de
Saúde (USB) que opera sob a Estratégia Saúde da Família (ESF) foram avaliados os
espaços relacionados à saúde da mulher que apresentavam violência de gênero.
Destes, a consulta médica e de
enfermagem, a consulta pré-natal, as visitas domiciliares e outros espaços não
especificamente voltados à saúde da mulher, como atendimento à criança,
curativos, vacinas e triagem foram citados como ambientes onde houve
reconhecimento de violência de gênero.
Outro foco de violência pela
invisibilidade de gênero se faz presente de duas formas: no se negar a
registrar e notificar a ocorrência da violência e também no foco, muitas vezes,
organicista do atendimento à usuária. Observam-se apenas fatores físicos,
deixando a saúde mental da paciente de lado, desvalorizando o sofrimento da
mesma e violentando a subjetividade de quem já está em grande sofrimento.
As autoras então sugeriram que
haja um fortalecimento dos canais de comunicação, dando mais atenção ao tema
através de escuta qualificada e identificação das demandas que chegam ao
serviço. Medidas estas que vão de encontro com aquilo que a ESF visa promover,
sem limitar o atendimento a este ou aquele setor, fazendo-o, portanto, de
maneira intersetorial.
A redução da visão hegemônica,
centrada no modelo queixa-conduta apoiado em uma racionalidade linear e
mecanicista, cujo embasamento teórico é biológico e voltado para a medicalização
é um dos objetivos a serem almejados pela ESF, não reduzindo a importância do
saber médico, mas sim reconhecendo todas as necessidades do usuário,
relacionando-o com o emocional, cultural e social de maneira coletiva.
A invisibilidade da violência de
gênero por parte dos serviços de saúde se deve também ao fato de que as
profissionais mulheres levam para seu campo de trabalho as concepções de gênero
às quais foram expostas durante suas vidas. Estas concepções tendem a ser
androcêntricas, cuja opressão e subalternização do gênero feminino são vistas
como algo comum e natural.
Esta postura reitera o que foi
afirmado a respeito da banalização e indiferença como contra-controle. Há
séculos que a mulher é sujeito de violências constantes, sendo controlada pelos
mais variados dispositivos. Das maneiras de lidar com este controle
estabeleceram-se a naturalização e vitimização, por parte das profissionais de
saúde, das mulheres vítimas de violência doméstica e sexual que buscam os
serviços de saúde.
O artigo reiterou também a
importância de espaços terapêuticos voltados à escuta destas mulheres. Tanto na
consulta médica, como em grupos terapêuticos voltados ao tema, isto possibilita
a ressignificação desta violência e a capacidade de lidar com isso com o coletivo,
tornando-se parte do processo de mudança.
A proposta de fortalecer a
escuta qualificada e romper com paradigmas hegemônicos, androcêntricos e
organicistas do modelo médico encontra forte respaldo no que Sidman (1995)
propõe como alternativa às punições. Não é necessário punir para evitar a
violência, fortalecer ações desejáveis que substituam as indesejáveis
apresenta-se como o princípio norteador fundamental de uma sociedade que possa
afirmar, de fato, que a violência reduziu daqui algum tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário