quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Violência de gênero nos serviços de saúde

Há quem diga que a violência caiu drasticamente se comparada com períodos anteriores da história da humanidade. Há quem afirme que violência é algo restrito a animais selvagens. Há quem defenda também que o ser humano está mais pacífico e mais civilizado. Essas ideias ingênuas, no entanto, são, no mínimo, discutíveis.
Guerras intermináveis, crimes terroristas, chacinas, banalização de assaltos, estupros, assassinatos são alguns exemplos de como a violência física está muito viva em nosso dia a dia sendo, não só veiculada, como perpetuada pela mídia que em muito se alimenta desta nossa cultura do medo e do terror para atingir seu público.
Não bastassem as formas físicas de violência temos também as psicológicas que aumentam vertiginosamente. Bullying (e cybergullying), abuso psicológico, preconceito, segregação socioeconômica, invisibilidade social e a indiferença se fazem cada vez mais presentes em nossas vidas com origens históricas longínquas, cujas raízes estão longe de se deteriorarem.
O que certamente aumentou ao longo do tempo foram maneiras e estratégias de tentar coibir a violência. O problema reside no fato de que a massiva maioria envolve punições ou mecanismos de controle e repressão, que são, por si só, formas de violência contra o ser humano.
Skinner (1979) já havia chamado atenção para o fato de que a punição não reduz permanentemente o comportamento que está sendo punido. Ela é “eficaz”, apenas no momento em que se faz presente. Tão logo cesse, o comportamento indesejável tende a retornar.
Em casos onde a punição persiste, como é o caso do sistema carcerário que, embora provado ineficaz, perdura por milênios, a tendência é que tais formas de controle gerem o que foi chamado por Sidman (1995) de contra-controle, que, a grosso modo, é a tendência dos sujeitos controlados a “revidarem”. Isto pode ocorrer das mais variadas formas, desde o revidar propriamente dito (rebeliões, punir o punidor, tornar-se hostil, tornar-se um agressor, etc), até começar a comportar-se de maneira indiferente à violência, banalizando a mesma.
A redução da violência, portanto, é altamente discutível. O que parece ter acontecido é que a violência foi se moldando às formas de controle e punição existentes adquirindo facetas mais sutis e se beneficiando da banalização e vista grossa cada vez mais frequentes em nossa sociedade. É de uma destas formas de violência, a contra mulheres nos serviços básicos de saúde, que o artigo de Guedes, Fonseca e Egry (2013) trata.
As autoras constataram que as mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, que representam cerca de 35% das queixas que levam mulheres a buscar serviços de saúde, não recebem o atendimento necessário e com a qualidade devida. Dentre os motivos para esta invisibilidade de violência apontados no artigo estão o sentimento de impotência para lidar com o assunto, a desinformação e a falta de capacitação profissional específica.
Em estudo realizado pelas autoras com 13 mulheres usuárias do serviço de saúde em uma Unidade Básica de Saúde (USB) que opera sob a Estratégia Saúde da Família (ESF) foram avaliados os espaços relacionados à saúde da mulher que apresentavam violência de gênero.
Destes, a consulta médica e de enfermagem, a consulta pré-natal, as visitas domiciliares e outros espaços não especificamente voltados à saúde da mulher, como atendimento à criança, curativos, vacinas e triagem foram citados como ambientes onde houve reconhecimento de violência de gênero.
Outro foco de violência pela invisibilidade de gênero se faz presente de duas formas: no se negar a registrar e notificar a ocorrência da violência e também no foco, muitas vezes, organicista do atendimento à usuária. Observam-se apenas fatores físicos, deixando a saúde mental da paciente de lado, desvalorizando o sofrimento da mesma e violentando a subjetividade de quem já está em grande sofrimento.
As autoras então sugeriram que haja um fortalecimento dos canais de comunicação, dando mais atenção ao tema através de escuta qualificada e identificação das demandas que chegam ao serviço. Medidas estas que vão de encontro com aquilo que a ESF visa promover, sem limitar o atendimento a este ou aquele setor, fazendo-o, portanto, de maneira intersetorial.
A redução da visão hegemônica, centrada no modelo queixa-conduta apoiado em uma racionalidade linear e mecanicista, cujo embasamento teórico é biológico e voltado para a medicalização é um dos objetivos a serem almejados pela ESF, não reduzindo a importância do saber médico, mas sim reconhecendo todas as necessidades do usuário, relacionando-o com o emocional, cultural e social de maneira coletiva.
A invisibilidade da violência de gênero por parte dos serviços de saúde se deve também ao fato de que as profissionais mulheres levam para seu campo de trabalho as concepções de gênero às quais foram expostas durante suas vidas. Estas concepções tendem a ser androcêntricas, cuja opressão e subalternização do gênero feminino são vistas como algo comum e natural.
Esta postura reitera o que foi afirmado a respeito da banalização e indiferença como contra-controle. Há séculos que a mulher é sujeito de violências constantes, sendo controlada pelos mais variados dispositivos. Das maneiras de lidar com este controle estabeleceram-se a naturalização e vitimização, por parte das profissionais de saúde, das mulheres vítimas de violência doméstica e sexual que buscam os serviços de saúde.
O artigo reiterou também a importância de espaços terapêuticos voltados à escuta destas mulheres. Tanto na consulta médica, como em grupos terapêuticos voltados ao tema, isto possibilita a ressignificação desta violência e a capacidade de lidar com isso com o coletivo, tornando-se parte do processo de mudança.
A proposta de fortalecer a escuta qualificada e romper com paradigmas hegemônicos, androcêntricos e organicistas do modelo médico encontra forte respaldo no que Sidman (1995) propõe como alternativa às punições. Não é necessário punir para evitar a violência, fortalecer ações desejáveis que substituam as indesejáveis apresenta-se como o princípio norteador fundamental de uma sociedade que possa afirmar, de fato, que a violência reduziu daqui algum tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Total de visualizações de página