Definir o ateísmo é tarefa tão
árdua quanto definir a religião. Muitas são as concepções erradas que se tem
deste termo, em grande parte, alimentadas por grupos religiosos que apenas o
enxergam como a opção dos imorais, e também alimentadas por aqueles que se
intitulam ateus apenas para hostilizar aqueles que acreditam em qualquer forma
de manifestação religiosa.
Contrastando com o vasto
material que se pode encontrar a respeito da religiosidade, espiritualidade,
experiência elementar – ou tantos outros termos que estejam no campo da fé – o
que se encontra a respeito do ateísmo é bastante limitado. Disto pode-se
inferir que, embora este problema tenha diminuído bastante nas últimas décadas,
discutir religião – em especial sob o enfoque da negação da mesma – ainda
encontra uma série de barreiras, seja naqueles que reprimem de maneira
agressiva o ateísmo, seja naqueles que preferem adotar uma postura neutra e não
discutir o tema.
O discurso religioso que a tudo
e todos busca englobar, não deixa de fora o ateísmo, chegando a defender, como
faz Rocha (2013), que este nada mais é que um ressentimento anticristão ou como
afirma Lecompte (1996) “De fato, foi só
em épocas e em regiões influenciadas pelo cristianismo que se encontrou o
ateísmo ou um secularismo e materialismo chão evacuando todo sentido religioso.
Conclui-se disso que se trata de um cristianismo mal recebido, mal compreendido
e mal vivido que gera o ateísmo”.
Valério (2009) complementa essa
distorção do que poderia ser o ateísmo ao colocar que “Quando o filósofo Paul Johannes Tillich disse que Deus é o símbolo
fundamental da preocupação do homem (TILLICH, 2005) deixou declarada a
impossibilidade do ateísmo verdadeiro. Ainda que o homem quisesse, seria
impossível para ele a descrença em Deus, pois é como se trouxesse os genes da
crença e da adoração em suas entranhas. De modo que o ateísmo não é uma
realidade própria de dada cultura ou de nenhuma outra, pois no âmago do ser
humano está a crença em Deus”.
Tais visões servem unicamente ao
propósito de deslegitimar ou invalidar qualquer posição contrária à dominação
religiosa excluindo a possibilidade de uma discussão franca e necessária sobre
uma possível vida sem religião.
Frequentemente coloca-se o
ateísmo apenas como uma negação de qualquer divindade ou religião (MINOIS,
1998). Esta definição não é suficiente, pois depende exclusivamente da religião
para defini-lo. O ateísmo como corrente filosófica, de fato, tem seu berço nas
religiões, pois é na direção de negá-las e negar a qualquer deus que se
estabelece. Esta visão, no entanto, parece ignorar que já cedo somos ensinados
a sermos curiosos e a questionar regras até que os que estão ao redor se cansem
e comecem a reprimir esta curiosidade e questionamento, repetindo um padrão que
se observa também na doutrinação religiosa e pela imposição de regras através
de outras formas de controle.
Embora a divulgação do ateísmo
tenha crescido muito a partir de autores como Richard Dawkins, Cristopher
Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett – que desenvolveram importantes trabalhos
no sentido de questionar a dominação religiosa em especial em instâncias
políticas e educacionais – é com considerável radicalismo que os ateus vêm se
apresentando.
Seja pare esses autores como
para tantos outros ateus em diversas páginas do Facebook a premissa básica é de
que toda e qualquer forma de manifestação religiosa é ruim ou perversa e, não
raramente, busca-se combater a religião com a mesma hostilidade criticada em
muitas dessas agências religiosas. É uma reação esperada, de certa forma, embora
ineficaz, uma vez que frente ao controle aversivo a tendência é de que o
contra-controle seja igualmente aversivo, visando anular a fonte inicial de
controle.
Uma alternativa a essa postura
consiste em deixar de lado visões dicotômicas e julgamentos morais do
comportamento religioso e se lançar a uma análise funcional destes
comportamentos, sem buscar legitimá-los ou invalidá-los, mas buscando entender
sua função para os indivíduos para que aí sim seja possível propor alternativas.
O ateísmo, deve combater sim,
dominações religiosas, mas não visando destruir a religião e sim, combater
opressões. Deve ser, portanto, em minha visão, um movimento de enfrentamento
àquilo que é imposto de maneira coercitiva ou persuasiva manipuladora e
impassível de questionamentos, em outras palavras, às regras dogmáticas. Não
muito diferente daquilo que se espera em um trabalho terapêutico, ou no pensamento
filosófico, por exemplo. Ou seja, um trabalho de desconstrução e questionamento
da realidade, o qual exige o reconhecimento das limitações humanas.
Neste ponto, certos defensores
de noções religiosas teriam a dizer que o ateísmo e a experiência religiosa em
pouco ou nada diferem. No entanto, por mais que se busque se distanciar das
religiões institucionalizadas, as ideias de alma, transcendência, religiosidade,
espiritualidade, busca por sentido e necessidades fundamentais tem suas origens
em organizações religiosas e, com grande frequência, caminham na direção de
legitimar a existência de algo que atribua um sentido a tudo e que seja além do
ser humano, alienando o ser humano a algo supra-humano.
O ateísmo, por outro lado, deve
partir do princípio de que não há a necessidade de uma busca por sentido
absoluto; de uma transcendência para se ser humano. De fato, para o ateísmo, ser
humano, deve residir em ser, e não
na busca do ser. Isto não implica, no entanto, em abrir mão de morais e
valores, ou de ser imediatista e individualista, como os críticos de plantão
fazem questão de afirmar. Pelo contrário, ser para um ser humano exige ser
social, ou seja, ser com o outro e a partir do outro.
Isto irá, indubitavelmente,
demandar uma série de regras e dispositivos de organização e de controle para
que tal convivência com o outro seja possível. Regras estas que devem ser
construídas com o outro e a partir do outro, sem buscar entidades metafísicas externas
que transcendam esta relação, tampouco que se engessem em algum sentido que
vise sanar o medo do vazio existencial, este resultante da constatação de
nossas limitações e de nossa finitude.
Mais ainda, o ateísmo tenta
romper com o paradigma frustrador de que sempre há algo melhor e mais perfeito
que deve ser buscado, admirado e invejado. É a tentativa de devolver ao ser
humano a sua condição de ser humano, ao invés de ser transcendente ou ser
divino.
Pode-se levantar a hipótese de
que os comportamentos religiosos se estabeleceram como práticas culturais a
partir de sua função última de aliviar o sofrimento humano perante a frustração
e ansiedade decorrentes da privação de sentido imposta pelo real em tempos onde
não havia recursos suficientes para se buscarem respostas seja sobre o mundo
externo ou sobre o mundo debaixo da pele.
Tais práticas foram passadas
adiante, de geração para geração, como estratégias supostamente eficazes de esquiva
da frequente privação de sentido em nossas vidas. Milênios se passaram e talvez
esteja na hora de se questionar a real função de tais comportamentos na
sociedade contemporânea e abrir a discussão para alternativas mais eficazes e
menos cristalizadas de enfrentamento do sofrimento humano.
Neste sentido, a preocupação
última de uma visão ateísta de mundo é a de resgatar o papel do ser humano como
únicos responsáveis por suas escolhas buscando devolver-lhe sua liberdade,
dentro do que é possível, vivendo-se em sociedade.
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