domingo, 10 de janeiro de 2016

O que é ateísmo



Definir o ateísmo é tarefa tão árdua quanto definir a religião. Muitas são as concepções erradas que se tem deste termo, em grande parte, alimentadas por grupos religiosos que apenas o enxergam como a opção dos imorais, e também alimentadas por aqueles que se intitulam ateus apenas para hostilizar aqueles que acreditam em qualquer forma de manifestação religiosa.
Contrastando com o vasto material que se pode encontrar a respeito da religiosidade, espiritualidade, experiência elementar – ou tantos outros termos que estejam no campo da fé – o que se encontra a respeito do ateísmo é bastante limitado. Disto pode-se inferir que, embora este problema tenha diminuído bastante nas últimas décadas, discutir religião – em especial sob o enfoque da negação da mesma – ainda encontra uma série de barreiras, seja naqueles que reprimem de maneira agressiva o ateísmo, seja naqueles que preferem adotar uma postura neutra e não discutir o tema.
O discurso religioso que a tudo e todos busca englobar, não deixa de fora o ateísmo, chegando a defender, como faz Rocha (2013), que este nada mais é que um ressentimento anticristão ou como afirma Lecompte (1996) “De fato, foi só em épocas e em regiões influenciadas pelo cristianismo que se encontrou o ateísmo ou um secularismo e materialismo chão evacuando todo sentido religioso. Conclui-se disso que se trata de um cristianismo mal recebido, mal compreendido e mal vivido que gera o ateísmo”.
Valério (2009) complementa essa distorção do que poderia ser o ateísmo ao colocar que “Quando o filósofo Paul Johannes Tillich disse que Deus é o símbolo fundamental da preocupação do homem (TILLICH, 2005) deixou declarada a impossibilidade do ateísmo verdadeiro. Ainda que o homem quisesse, seria impossível para ele a descrença em Deus, pois é como se trouxesse os genes da crença e da adoração em suas entranhas. De modo que o ateísmo não é uma realidade própria de dada cultura ou de nenhuma outra, pois no âmago do ser humano está a crença em Deus”.
Tais visões servem unicamente ao propósito de deslegitimar ou invalidar qualquer posição contrária à dominação religiosa excluindo a possibilidade de uma discussão franca e necessária sobre uma possível vida sem religião.
Frequentemente coloca-se o ateísmo apenas como uma negação de qualquer divindade ou religião (MINOIS, 1998). Esta definição não é suficiente, pois depende exclusivamente da religião para defini-lo. O ateísmo como corrente filosófica, de fato, tem seu berço nas religiões, pois é na direção de negá-las e negar a qualquer deus que se estabelece. Esta visão, no entanto, parece ignorar que já cedo somos ensinados a sermos curiosos e a questionar regras até que os que estão ao redor se cansem e comecem a reprimir esta curiosidade e questionamento, repetindo um padrão que se observa também na doutrinação religiosa e pela imposição de regras através de outras formas de controle.
Embora a divulgação do ateísmo tenha crescido muito a partir de autores como Richard Dawkins, Cristopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett – que desenvolveram importantes trabalhos no sentido de questionar a dominação religiosa em especial em instâncias políticas e educacionais – é com considerável radicalismo que os ateus vêm se apresentando.
Seja pare esses autores como para tantos outros ateus em diversas páginas do Facebook a premissa básica é de que toda e qualquer forma de manifestação religiosa é ruim ou perversa e, não raramente, busca-se combater a religião com a mesma hostilidade criticada em muitas dessas agências religiosas. É uma reação esperada, de certa forma, embora ineficaz, uma vez que frente ao controle aversivo a tendência é de que o contra-controle seja igualmente aversivo, visando anular a fonte inicial de controle.
Uma alternativa a essa postura consiste em deixar de lado visões dicotômicas e julgamentos morais do comportamento religioso e se lançar a uma análise funcional destes comportamentos, sem buscar legitimá-los ou invalidá-los, mas buscando entender sua função para os indivíduos para que aí sim seja possível propor alternativas.
O ateísmo, deve combater sim, dominações religiosas, mas não visando destruir a religião e sim, combater opressões. Deve ser, portanto, em minha visão, um movimento de enfrentamento àquilo que é imposto de maneira coercitiva ou persuasiva manipuladora e impassível de questionamentos, em outras palavras, às regras dogmáticas. Não muito diferente daquilo que se espera em um trabalho terapêutico, ou no pensamento filosófico, por exemplo. Ou seja, um trabalho de desconstrução e questionamento da realidade, o qual exige o reconhecimento das limitações humanas.
Neste ponto, certos defensores de noções religiosas teriam a dizer que o ateísmo e a experiência religiosa em pouco ou nada diferem. No entanto, por mais que se busque se distanciar das religiões institucionalizadas, as ideias de alma, transcendência, religiosidade, espiritualidade, busca por sentido e necessidades fundamentais tem suas origens em organizações religiosas e, com grande frequência, caminham na direção de legitimar a existência de algo que atribua um sentido a tudo e que seja além do ser humano, alienando o ser humano a algo supra-humano.
O ateísmo, por outro lado, deve partir do princípio de que não há a necessidade de uma busca por sentido absoluto; de uma transcendência para se ser humano. De fato, para o ateísmo, ser humano, deve residir em ser, e não na busca do ser. Isto não implica, no entanto, em abrir mão de morais e valores, ou de ser imediatista e individualista, como os críticos de plantão fazem questão de afirmar. Pelo contrário, ser para um ser humano exige ser social, ou seja, ser com o outro e a partir do outro.
Isto irá, indubitavelmente, demandar uma série de regras e dispositivos de organização e de controle para que tal convivência com o outro seja possível. Regras estas que devem ser construídas com o outro e a partir do outro, sem buscar entidades metafísicas externas que transcendam esta relação, tampouco que se engessem em algum sentido que vise sanar o medo do vazio existencial, este resultante da constatação de nossas limitações e de nossa finitude.
Mais ainda, o ateísmo tenta romper com o paradigma frustrador de que sempre há algo melhor e mais perfeito que deve ser buscado, admirado e invejado. É a tentativa de devolver ao ser humano a sua condição de ser humano, ao invés de ser transcendente ou ser divino.
Pode-se levantar a hipótese de que os comportamentos religiosos se estabeleceram como práticas culturais a partir de sua função última de aliviar o sofrimento humano perante a frustração e ansiedade decorrentes da privação de sentido imposta pelo real em tempos onde não havia recursos suficientes para se buscarem respostas seja sobre o mundo externo ou sobre o mundo debaixo da pele.
Tais práticas foram passadas adiante, de geração para geração, como estratégias supostamente eficazes de esquiva da frequente privação de sentido em nossas vidas. Milênios se passaram e talvez esteja na hora de se questionar a real função de tais comportamentos na sociedade contemporânea e abrir a discussão para alternativas mais eficazes e menos cristalizadas de enfrentamento do sofrimento humano.
Neste sentido, a preocupação última de uma visão ateísta de mundo é a de resgatar o papel do ser humano como únicos responsáveis por suas escolhas buscando devolver-lhe sua liberdade, dentro do que é possível, vivendo-se em sociedade.

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