quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Behaviorismo fala sobre sentimentos?

Um dos maiores equívocos a respeito da teoria de B. F. Skinner, o behaviorismo radical, é afirmar que os sentimentos não têm lugar em tal teoria. Na realidade, é justamente na atenção voltada para os sentimentos e outros eventos encobertos que o behaviorismo de Skinner se diferenciou de seu antecessor, John Watson, para quem só era objeto de estudo aquilo que podia ser observado e com o qual um grupo de pessoas concordava. Para Skinner (1991), “a maneira como as pessoas se sentem é, frequentemente, tão importante quanto o que elas fazem” (p.1).
Na perspectiva behaviorista, sentimentos não podem ser apontados como causa de um comportamento, sendo então, um produto de contingências (Moore, 2000). As causas, no behaviorismo radical expressam as relações funcionais entre eventos, distanciando-se da ideia de causa e efeito, a qual Skinner refutava (Gongora e Abib, 2001).
Skinner (1991) complementa ao colocar que os sentimentos são, antes de qualquer coisa, condições corporais e, embora sejam fáceis de serem confundidos com uma causa – uma vez que se apresentam enquanto estamos nos comportando – os eventos é que de fato são responsáveis pelo que fazemos e pelo que sentimos.
O que um sujeito observa através da introspecção é o estado de seu corpo, condições corporais ou o próprio corpo se comportando (Gongora e Abib, 2001). A leitura que se faz do sentimento a partir de variáveis externas, entretanto, é de grande relevância para uma análise funcional do comportamento emitido por um sujeito.
Em dado momento, esta leitura encontra respaldo em leituras similares feitas por outros e dá-se um nome a este sentimento, que será compartilhado e reproduzido pelos pares, destacando a grande importância que a comunidade verbal tem na nomeação e conhecimento dos sentimentos por cada indivíduo daquela comunidade, assim como na tendência de atribuir causa do comportamento aos sentimentos.
O problema, portanto, reside em representar e reduzir todo o evento ao nome dado ao que se sentiu na experiência e atribuir a isto a causa da experiência, tal como se nossos sentimentos controlassem nossos comportamentos; “corremos por causa do medo”, “deprimimos pelo pesar”, “choramos porque estamos tristes”, etc. (Skinner, 1989, p. 160).
Os sentimentos devem, deste modo, ser estudados, buscando nos comportamentos que ocorrem juntamente a eles, os antecedentes na história de vida do sujeito e as consequências para esclarecer melhor as contingências em que os sentimentos se apresentam sem ter que recorrer a um “agente criador ou propulsor e que evoca comportamentos” (Gongora e Abib, 2001).
Rico, Golfeto e Hamasaki (2013) afirmam que “para o behaviorismo radical, os sentimentos são respostas eliciadas correlatas de nossos comportamentos” (p.91). Para estes autores, o que chamamos de sentimentos (raiva, paixão, tristeza, etc) é o conjunto de eventos públicos (passíveis de observação por outros) e privados ou encobertos (acessíveis apenas ao sujeito que se comporta).
Dizer que uma resposta é eliciada é afirmar que um determinado estímulo ambiental pode ter como consequência certa resposta reflexa incondicionada. A taquicardia em uma situação real de ameaça, por exemplo. No entanto, outros eventos podem ser pareados com esses estímulos fazendo com que a resposta reflexa surja também, com intensidades variadas, em tais eventos. Nestes casos, a resposta reflexa deixa de ser incondicionada para ser condicionada, pois foi aprendida (Rico, Golfeto & Hamasaki, 2013).
O behaviorismo radical oferece uma leitura diferenciada dos sentimentos, sem recorrer a explicações mentalistas. Para tanto, olha para “as variáveis das quais o comportamento relacionado com o sentimento é função” (Rico, Golfeto & Hamasaki, p. 94, 2013). A descrição de sentimentos na análise do comportamento sempre levará em consideração a história de condicionamento de cada indivíduo e os eventos antecedentes e consequentes ao comportamento relacionado com o sentimento.
Alguns exemplos de operacionalização de sentimentos na perspectiva behaviorista são dados por Skinner. Segundo o autor (1991), os termos gregos usados para diferenciar três tipos de amor, eros, philia, e ágape referem-se, respectivamente, aos níveis filogenético, ontogenético e cultural do comportamento de amar.
No primeiro, predomina o reforçamento sexual e o amor oriundo da seleção natural. A segunda ocorre na história de vida de cada indivíduo, fazendo-o dizer que ama uma música, um lugar ou uma comida, por exemplo. Por fim, no terceiro nível, o cultural, o reforçamento se dá na presença do outro, de maneira invertida. Ou seja, reforçamos o comportamento do outro, demonstrando prazer pelo que ele faz e, consequentemente, fortalecemos o grupo (Skinner, 1991).
Skinner (2003) dá atenção especial para o sentimento de ansiedade, definido como o resultado da contingência entre um estímulo aversivo precedido de outro estímulo distante no tempo do aversivo, este que sinaliza a probabilidade da ocorrência de uma consequência aversiva. Segundo o autor, a ansiedade pode também aparecer quando se experimenta uma consequência reforçadora. Neste caso, ao invés de evitar, o sujeito antecipa ações a fim de obter o reforço. A ansiedade seria, portanto, um processo de aprendizagem a partir de relações diretas entre o sujeito e o meio.
O outro sentimento a ser destacado pelo autor é o medo, diferenciando-o em relação à ansiedade. Ao se referir a experimentos realizados com ratos em que, depois de estabelecida a contingência de pressionar a barra e obter água, foi introduzido um estímulo sonoro seguido de um estímulo aversivo (choque) e verificar uma diminuição no comportamento de pressionar a barra, Skinner (1991) afirma que 
O experimento teria dado um resultado diferente se o choque tivesse sido contingente à resposta – em outras palavras, se a pressão à barra tivesse sido punida. O rato teria igualmente parado de pressionar a barra, mas o estado corporal teria sido diferente. Provavelmente, ele seria chamado de medo. A ansiedade talvez seja uma espécie de medo (nós diríamos que o rato estava ‘com medo de que ocorresse outro choque’), mas isso é diferente de estar com medo de pressionar a barra ‘porque outro choque pode acontecer’ (p.5).
Portanto, a reação contingente à punição imediata é a de medo; reação esta que pode estabelecer a condição para uma resposta emocional de ansiedade frente à possibilidade de sofrer esta punição novamente, sendo “a ansiedade, talvez, um tipo de medo” (Skinner, 1991, p.5).
O controle coercitivo tem como consequência uma série de efeitos colaterais negativos. Respostas ansiosas, comportamentos agressivos, isolamento, padrões comportamentais compulsivos. Em dado momento, no entanto, tal controle pode gerar o chamado contra-controle, em que a parte oprimida “revida” contra o opressor, perpetuando o ciclo de punição. 
Rico, Golfeto e Hamasaki (2013) apresentam outros exemplos de descrições analítico-comportamentais simplificadas dos sentimentos como a alegria, a tristeza, a raiva, a frustração, a vergonha e a culpa. As descrições referem-se a relações comportamentais nas quais comumente tais sentimentos aparecem.
A alegria estaria relacionada a um histórico de reforçadores positivos; a tristeza ao término de reforçadores; a raiva com a apresentação de estímulos aversivos, na maioria das vezes feita por outro individuo; a frustração, que surge quando algo que era tipicamente reforçado cessa em sê-lo e; a culpa e vergonha que envolvem situações em que há a apresentação de estímulos aversivos ou remoção de estímulos reforçadores nas quais o indivíduo se considera o único responsável.
Todos estes exemplos de operacionalização de sentimentos reforçam a importância que a comunidade verbal tem na nomeação de sentimentos. Tal comunidade irá atribuir nomes levando em conta a história de aprendizagem acerca de tais eventos, ou seja, como os membros interpretam e inferem o “mundo debaixo da pele”.
O estudo dos eventos encobertos certamente é repleto de desafios, no entanto, o terreno é fértil para a Análise do Comportamento sobre esse tema, inclusive sobre os sentimentos. Pontos como evitar recorrer a explicações mentalistas, levar em consideração o fato de que a história de condicionamento de cada indivíduo é única e a importância dos eventos antecedentes e consequentes aos comportamentos que são relacionados aos sentimentos, propiciam aos analistas do comportamento um olhar singular e diferenciado a este fenômeno, valorizando a subjetividade de cada indivíduo e contribuindo para o coletivo.


Referências
                                 
Gongora, M. A. N. & Abib, J. A. D. (2001). Questões referentes à causalidade e eventos privados no Behaviorismo Radical. Em Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, v.3, n.1, pp. 9-24.
Pinto, A. R. (2001). Medo: algumas considerações numa ótica behaviorista radical. Em: Lato & Sensu, v.2, n.3, pp. 14-15.
Rico, V. V.; Golfeto, R. & Hamasaki, E. I. M. (2013). Sentimentos. Em M. M. C. Hübner e M. B. Moreira (coord.) Fundamentos da Psicologia: Temas Clássicos da Psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan
Skinner, B. F. (1989). Eventos privados em uma ciência natural. Em J. C. Todorov e R. Azzi (7ª Ed.) Ciência e Comportamento humano. São Paulo, SP: Martins Fontes Editora.
______. (1991). Questões recentes na análise comportamental. Campinas, SP: Papirus.
______. (2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo, SP: Martins Fontes Editora.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Violência de gênero nos serviços de saúde

Há quem diga que a violência caiu drasticamente se comparada com períodos anteriores da história da humanidade. Há quem afirme que violência é algo restrito a animais selvagens. Há quem defenda também que o ser humano está mais pacífico e mais civilizado. Essas ideias ingênuas, no entanto, são, no mínimo, discutíveis.
Guerras intermináveis, crimes terroristas, chacinas, banalização de assaltos, estupros, assassinatos são alguns exemplos de como a violência física está muito viva em nosso dia a dia sendo, não só veiculada, como perpetuada pela mídia que em muito se alimenta desta nossa cultura do medo e do terror para atingir seu público.
Não bastassem as formas físicas de violência temos também as psicológicas que aumentam vertiginosamente. Bullying (e cybergullying), abuso psicológico, preconceito, segregação socioeconômica, invisibilidade social e a indiferença se fazem cada vez mais presentes em nossas vidas com origens históricas longínquas, cujas raízes estão longe de se deteriorarem.
O que certamente aumentou ao longo do tempo foram maneiras e estratégias de tentar coibir a violência. O problema reside no fato de que a massiva maioria envolve punições ou mecanismos de controle e repressão, que são, por si só, formas de violência contra o ser humano.
Skinner (1979) já havia chamado atenção para o fato de que a punição não reduz permanentemente o comportamento que está sendo punido. Ela é “eficaz”, apenas no momento em que se faz presente. Tão logo cesse, o comportamento indesejável tende a retornar.
Em casos onde a punição persiste, como é o caso do sistema carcerário que, embora provado ineficaz, perdura por milênios, a tendência é que tais formas de controle gerem o que foi chamado por Sidman (1995) de contra-controle, que, a grosso modo, é a tendência dos sujeitos controlados a “revidarem”. Isto pode ocorrer das mais variadas formas, desde o revidar propriamente dito (rebeliões, punir o punidor, tornar-se hostil, tornar-se um agressor, etc), até começar a comportar-se de maneira indiferente à violência, banalizando a mesma.
A redução da violência, portanto, é altamente discutível. O que parece ter acontecido é que a violência foi se moldando às formas de controle e punição existentes adquirindo facetas mais sutis e se beneficiando da banalização e vista grossa cada vez mais frequentes em nossa sociedade. É de uma destas formas de violência, a contra mulheres nos serviços básicos de saúde, que o artigo de Guedes, Fonseca e Egry (2013) trata.
As autoras constataram que as mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, que representam cerca de 35% das queixas que levam mulheres a buscar serviços de saúde, não recebem o atendimento necessário e com a qualidade devida. Dentre os motivos para esta invisibilidade de violência apontados no artigo estão o sentimento de impotência para lidar com o assunto, a desinformação e a falta de capacitação profissional específica.
Em estudo realizado pelas autoras com 13 mulheres usuárias do serviço de saúde em uma Unidade Básica de Saúde (USB) que opera sob a Estratégia Saúde da Família (ESF) foram avaliados os espaços relacionados à saúde da mulher que apresentavam violência de gênero.
Destes, a consulta médica e de enfermagem, a consulta pré-natal, as visitas domiciliares e outros espaços não especificamente voltados à saúde da mulher, como atendimento à criança, curativos, vacinas e triagem foram citados como ambientes onde houve reconhecimento de violência de gênero.
Outro foco de violência pela invisibilidade de gênero se faz presente de duas formas: no se negar a registrar e notificar a ocorrência da violência e também no foco, muitas vezes, organicista do atendimento à usuária. Observam-se apenas fatores físicos, deixando a saúde mental da paciente de lado, desvalorizando o sofrimento da mesma e violentando a subjetividade de quem já está em grande sofrimento.
As autoras então sugeriram que haja um fortalecimento dos canais de comunicação, dando mais atenção ao tema através de escuta qualificada e identificação das demandas que chegam ao serviço. Medidas estas que vão de encontro com aquilo que a ESF visa promover, sem limitar o atendimento a este ou aquele setor, fazendo-o, portanto, de maneira intersetorial.
A redução da visão hegemônica, centrada no modelo queixa-conduta apoiado em uma racionalidade linear e mecanicista, cujo embasamento teórico é biológico e voltado para a medicalização é um dos objetivos a serem almejados pela ESF, não reduzindo a importância do saber médico, mas sim reconhecendo todas as necessidades do usuário, relacionando-o com o emocional, cultural e social de maneira coletiva.
A invisibilidade da violência de gênero por parte dos serviços de saúde se deve também ao fato de que as profissionais mulheres levam para seu campo de trabalho as concepções de gênero às quais foram expostas durante suas vidas. Estas concepções tendem a ser androcêntricas, cuja opressão e subalternização do gênero feminino são vistas como algo comum e natural.
Esta postura reitera o que foi afirmado a respeito da banalização e indiferença como contra-controle. Há séculos que a mulher é sujeito de violências constantes, sendo controlada pelos mais variados dispositivos. Das maneiras de lidar com este controle estabeleceram-se a naturalização e vitimização, por parte das profissionais de saúde, das mulheres vítimas de violência doméstica e sexual que buscam os serviços de saúde.
O artigo reiterou também a importância de espaços terapêuticos voltados à escuta destas mulheres. Tanto na consulta médica, como em grupos terapêuticos voltados ao tema, isto possibilita a ressignificação desta violência e a capacidade de lidar com isso com o coletivo, tornando-se parte do processo de mudança.
A proposta de fortalecer a escuta qualificada e romper com paradigmas hegemônicos, androcêntricos e organicistas do modelo médico encontra forte respaldo no que Sidman (1995) propõe como alternativa às punições. Não é necessário punir para evitar a violência, fortalecer ações desejáveis que substituam as indesejáveis apresenta-se como o princípio norteador fundamental de uma sociedade que possa afirmar, de fato, que a violência reduziu daqui algum tempo.

domingo, 20 de outubro de 2013

A resiliência em Precious

Resiliência é um termo cunhado na Física e relaciona-se à propriedade dos materiais de não sofrerem ruptura ao serem submetidos à tensão, podendo ou não ficar deformados após o cessar desta tensão. Resiliência é também a palavra que pode definir a história de Claireece Precious Jones, ou apenas Precious.
Em seus 16 anos, Precious possui imaginação muito fértil e criativa, sofre de obesidade mórbida, tem grandes dificuldades na escola por ser analfabeta funcional, acabando por ser expulsa da mesma ao ser constatado que está grávida pela segunda vez. O pai deste bebê expõe o cenário coercitivo ao qual a jovem é exposta diariamente desde sua infância. O pai da personagem principal abusa sexualmente, fisicamente e psicologicamente da filha desde os três anos de idade sendo então o responsável pelas gravidezes da mesma.
A mãe, Mary, vive dos benefícios que o Estado paga à Precious por sua primeira filha, portadora de Síndrome de Down. Frente aos abusos cometidos por seu marido, Mary esquiva da realidade e alimenta um ciúme intenso pela filha, vendo-a como rival, contribuindo para o sofrimento da adolescente negligenciando-a e abusando-a psicologicamente.
Em tal cenário, com estilos parentais extremamente negativos, sem a sustentação educacional necessária e tendo sido exposta a pouquíssimos modelos, com exceção de sua avó materna, de habilidades sociais, restam à Precious suas duas válvulas de escape: a comida e sua imaginação. A primeira lhe traz sérios prejuízos externalizados em sua obesidade mórbida. A segunda, entretanto, pode ter sido um dos principais fatores de resiliência frente a tantas adversidades.
Há, no entanto, outro importante fator que contribuiu para que a jovem Precious não sofresse ruptura com toda a tensão a que estava submetida. Ao ser expulsa da escola por estar grávida, a mesma foi direcionada a uma escola de ensino diferenciado para garotas com problemas sociais. Nesta escola ela conhece Ms. Blu Rain, professora que, através de sua interação atenciosa e solícita com seus alunos, em especial com a adolescente, mostra-lhe novas maneiras de enfrentar suas adversidades agora agravadas pelo fato de que ao sair da escola regular pararia de receber os benefícios do Estado, fazendo com que sua mãe a trate de maneira ainda mais violenta.
Precious, no entanto, demonstra mais uma vez sua grande resiliência e não abandona a escola especial o que lhe propicia o aprendizado de novas habilidades sociais, além de aprender a ler e a escrever. Em visita ao Serviço Social revela a verdade sobre os abusos que sofre em casa, o que acarreta na interrupção dos benefícios. Pouco tempo depois, nasce o segundo filho, Abdul, e após o período de internação no hospital, a adolescente volta para casa onde sua mãe a hostiliza e derruba o recém-nascido bebê o que faz com que a jovem fuja da casa e procure a ajuda da professora, Ms. Rain que a acolhe em sua casa até achar um local para a mesma ficar.
A protagonista, agora em uma casa de passagem, recebe uma visita de sua mãe que lhe conta que seu marido faleceu de AIDS, o que assusta Precious fazendo com que busque fazer o teste e descubra que é portadora do vírus, mas seu filho não. Na etapa final do filme, a jovem está no Serviço Social com sua mãe que diz à assistente social que deseja ser uma família com Precious e suas netas.
Em uma última demonstração da incrível resiliência fortalecida pelas novas relações sociais, novas experiências que viveu e pela confiança melhorada após criação de vínculos saudáveis e desenvolvimento de suas habilidades escolares, a protagonista pega seu bebê e sua primeira filha e vai embora dizendo à mãe que nunca mais a verá.
Impressionante como é a demonstração de resiliência apresentada pela personagem neste filme, raras são as situações em que há um final feliz para crianças criadas em ambientes tão aversivos quanto o apresentado no filme. O filme choca por mostrar, sem muito pudor, a brutalidade de pais abusadores e negligentes e as consequências que tais estilos parentais podem ter nos filhos como o comer compulsivo, autodepreciação, fugas da realidade, agressividade, entre outros comportamentos.
O filme nos faz refletir sobre o papel da família, do Estado e das relações sociais para que o desenvolvimento de um indivíduo possa se dar levando em consideração o bio, o psico e o social. Além disso, nos convida a uma reflexão a respeito de como um problema social reflete práticas culturais coercitivas as quais todos compartilham parcela de responsabilidade a respeito.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O "demônio" está do lado de dentro

Quem acompanha o blog e acompanhou meu segundo ano na faculdade sabe que eu dediquei especial atenção no ano de 2012 ao fenômeno do alcoolismo e a fatores que influenciam na busca, manutenção e uso abusivo do álcool. Em um primeiro momento me debrucei sobre a influência da mídia no alcoolismo, em particular, na adolescência e, em seguida, sobre a influência dos valores alienantes produzidos pelo capitalismo na percepção que a sociedade, em particular, o jovem universitário, tem do álcool.
O motivo principal que me levou a me aprofundar neste tema foi, principalmente, uma série de questionamentos a respeito do que levava as pessoas a consumirem e abusarem de uma substância sabidamente prejudicial, frequentemente subestimando os efeitos negativos da mesma. No entanto, tão logo iniciei a pesquisa, rapidamente abandonei a arrogância de reduzir esse padrão comportamental ao uso e abuso do álcool e outras drogas. Um olhar um pouco mais atencioso permitiu observar com facilidade padrões auto-destrutivos e abusivos em várias instâncias da vida de um indivíduo, seja em relacionamentos (sejam com a família, com colegas ou namorados/as), com o trabalho (os famosos workaholics), com o lazer (o hedonismo), com a religião (extremistas e ortodoxos) e tantos outros mais.
Várias coisas começaram a me chamar a atenção no que concerne a semelhança de raciocínios construídos em torno destas relações destrutivas. A principal delas remete ao uso destas relações como mecanismos de escapismo da realidade, seja qual ela for para cada indivíduo. Parece haver um investimento intenso e cego em um "outro" - seja humano ou não - que sanaria magicamente todos os medos, inseguranças e dúvidas que sentimos. Colocado desta maneira, poucos questionariam a ineficácia de tal método, entretanto, menos ainda poderiam afirmar não se valer ou ter se valido de pelo menos um destes mecanismos ao longo da vida.
Como Freud, em sua obra "O Mal-estar na Civilização" (1930), bem colocou: 
"Mas diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade. É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. (...) Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe".
Outro ponto que parece ressonar nestas estratégias de defesa é a atribuição a um fator externo de toda a responsabilidade por aquilo que se faz e pelo "destino" das ações, por assim dizer. De modo direto ou indireto, este outro que deveria ser minha solução é também, o culpado caso a solução não venha ou não se sustente. Assim como na bebida, há o caso dos que dizem que o fazem porque aprenderam com a família, ou por culpa da publicidade, ou porque a bebida os ajuda a serem mais "sociais" e a se divertirem, nos relacionamentos há os que dizem que se submetem ao outro ou o submetem por conta de uma noção idealizada de gostar; no trabalho os que o executam de maneira patológica pois afirmam que precisam sustentar a família; no lazer aqueles que acreditam que a solução está nos prazeres da vida; e na religião a ilusão de uma figura paternal que tudo vê e que irá nos julgar quando morrermos, fazendo com que tenhamos que sempre agir corretamente.
No título de minhas duas pesquisas tive cuidado especial em utilizar a palavra influência justamente para ir na contramão do senso comum de buscar culpar fatores externos pelas próprias escolhas. É fato que não se pode negar a importância de fatores como a família e o meio na formação e manutenção de padrões comportamentais, e que, nos anos iniciais e na adolescência a psique do sujeito está sendo construída e estabelecida de modo que o mesmo não tem ainda capacidade de assumir plena responsabilidade por suas escolhas, embora as faça, não obstante.
Passadas estas etapas iniciais, no entanto, nas quais o sujeito já experimentou o prazer, a religião, os relacionamentos e,  muitas vezes, o trabalho e as drogas também, este indivíduo será, invariavelmente, impelido a uma crise. Os valores e regras que por tanto tempo foram reproduzidos a partir de um modelo aprendido começarão a não mais servir e as consequências de segui-los com tanto afinco amontoam-se fazendo com que se tenha que decidir entre dois caminhos: o da alienação, mergulhando em alguma ou mais de uma destas experiências ou o da reconstrução e flexibilização das regras.
As regras que levam à alienação frequentemente se estabelecem a partir da generalização de uma consequência desagradável em determinada experiência. Passamos então, a sermos totalmente controlados por nossas regras, buscando sempre um padrão utópico e idealizado de mundo onde estas consequências desagradáveis jamais voltem a ocorrer e , neste processo, desaprendemos a sentir e a ser. Tentamos tão insistentemente controlar nossos medos e inseguranças que acabamos nos enclausurando em tentativas de inibi-los  ou visando de maneira obcecada os completos opostos destes - ou que pelo menos entendermos ser os completos opostos -, a vida em busca do prazer e da "felicidade", esta sempre como aquilo que nos é ensinado que é felicidade - artificial, inócua e sinônima de prazer, não de virtudes.
Dada a crise, no entanto, não há mais a menor possibilidade de se querer culpar ou atribuir a um fator externo a responsabilidade pelas próprias escolhas e subsequentes consequências. Perceber e declarar a insatisfação com um padrão comportamental e nele insistir sem buscar mudança é alienação em sua forma mais brutal, pois anula o Eu e cristaliza-se uma máscara daquilo que o outro quer que eu seja e daquilo que eu quero que o outro veja. Assumir a responsabilidade pelos próprios atos e questionar as próprias regras jamais deve ser encarado de modo leviano, afinal estas regras que organizaram toda a etapa inicial da vida do sujeito e que justificam, a partir da seleção de interpretações que as legitimam, a leitura que se faz do mundo. Questioná-las envolve admitir de modo transparente e sincero as próprias falhas, fraquezas, medos e inseguranças e, acima de tudo, que somos seres humanos, fadados à imperfeição. Não é difícil entender porque tão frequentemente opta-se por se alienar e tampouco é provável que se consiga passar pela crise - que se espera, não ocorra apenas uma vez, mas frequentemente - inteiramente sozinho. Muito do que somos deve-se às nossas relações, descartá-las em momento tão importante é, também, uma alienação do Eu com consequências, não raramente, catastróficas.
Difícil como é esta tarefa de desconstrução do Eu (para passar a ser agora um verdadeiro Eu), cada conflituoso e desgastante passo para frente nesta jornada tende a ser extremamente recompensador. Um momento de lucidez basta para compensar uma vida de alienação. Lucidez esta que não se encontra em nenhuma resposta pronta, dogmática, estática. É justamente na ausência destas respostas, no reconhecimento das próprias limitações, na capacidade de sentir verdadeiramente sem que isto implique em definir os rumos das próprias ações é que um se torna lúcido, sensível ao mundo, não às regras engessadas que nos são impostas e que optamos por manter. A partir da aceitação da própria condição enquanto ser humano é que se torna possível aceitar o outro como humano e não como aquele que eu quero ver ou que quer se visto de determinada maneira.
Alguns poderiam argumentar que se os modelos que aprendemos é que nos alienam deveríamos então buscar mudar os modelos. Essa linha de raciocínio é extremamente perigosa, pois nos amarraria mais intensamente às regras, uma vez que buscaríamos ainda mais enquadrar as ações dos outros naquilo que acreditamos que deve ser feito, o que, em pouco tempo, se provaria impossível, como se prova diariamente para tantas pessoas. Não se pode controlar o comportamento dos outros, salvo em caso de coerção, método o qual a história tem exemplos de sobra para provar ineficaz. O que se deve buscar é a mudança do próprio comportamento, jamais visando a transformação desta mudança em modelo ou regra a ser seguido à risca. A mudança é um continuum, não um processo que deve se estagnar em algum momento. Uma crise deve despertar outra até que a própria natureza encerre o ciclo. 
Não se deve temer este processo, pelo contrário, deve-se sentir o medo, deixá-lo tomar conta de cada parte do ser, aprender o que puder com ele e então deixá-lo ir, pois somente assim ele não assumirá o controle, uma vez que, quanto mais se tenta controlar os sentimentos, mais eles o controlam em contrapartida, o que é especialmente verdadeiro para um sentimento tão poderoso como o medo. Não espere que a mudança venha de um fator externo, tampouco culpe tais fatores pela incapacidade de iniciar este processo interminável. Frente à crise, a escolha é sua e somente sua, bem como a responsabilidade pelas consequências do rumo tomado.

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